domingo, 23 de fevereiro de 2025

Educar não é doutrinar

No diálogo de Platão, "Alcibíades I", Alcibíades aconselha-se com Sócrates a fim de se tornar um bom governante de Atenas, preparar-se para entrar na vida pública, ele é ambicioso, e precisa, segundo o mestre estar preparado, Alcibíades ainda desconhece a noção de justiça. O primeiro passo é conhecer a si mesmo, saber que nada sabe, estar aberto à dúvida, ao diálogo. Merecer a liberdade cabe aos virtuosos, com a ajuda do mestre ele aprenderá o que é ser livre. Se quer cozinhar, precisa aprender, se quer navegar, precisa aprender, é preciso confiança, argumentação, apresentar questões, nunca impor uma solução, uma única visão, capacitar para as interpretações.

A mais nefasta ignorância é a "dos que não sabem mas pensam que sabem" (Platão, in: Alceabíades I).

Cuidar de algo ou de alguém é melhorar, aperfeiçoar, conduzir crianças e jovens para a autonomia, para o autoconhecimento. A educação do jovem para a prática da justiça, sabedoria, compreensão do todo, ser livres, se opõe à doutrinação, pois esta escraviza, é unilateral, deforma, desvirtua.

Vejamos um exemplo recente em "As contribuições teórico-metodológicas de Lênin e Gramsci para a educação contemporânea" (in Revista Percursos, 2024), considerados "pensadores atuais para pensar a crise do capitalismo, lutar contra as forças reacionárias e conservadoras que visam sustentar o sistema imperialista". Lênin morreu em 1924, Gramsci em 1937, ainda assim "atuais"? O ensino deve ser "geral e politécnico", prossegue o autor, "educar para o trabalho, para uma sociedade dirigida pelo proletariado, a cultura de massas, ensinar técnicas de trabalho modernas, ensinar os alunos a se organizarem para transformar e dirigir a sociedade", lições leninistas.


Discurso de Lênin, Revolução 1917


Lições de Gramsci: trabalho, revolução, contra a repressão da classe dirigente, de modo dialético, criativo, formação científico-profissional e sócio política do intelectual orgânico, criação de um "terreno ideológico", reformar consciências, conduzir a sociedade não só pela força, mas pela direção intelectual e moral, baseada na mais moderna filosofia da práxis. Segundo o próprio autor do artigo, o imperialismo é culpado pela migração, ambiente (sic), violência. A educação das classes trabalhadoras deve levar à "fundação de um novo Estado", "construir uma consciência política", "romper com o capitalismo e seus derivados (o trabalho explorado, a devassa do planeta, as desigualdades e injustiças, o racismo, o machismo, o imperialismo e todas as formas de dominação) construir uma sociedade integral civil e política".

Pausa para respirar. Em resumo, seria educar soldadinhos para que eles possam substituir o capitalismo e o imperialismo por uma sociedade integral que livrará o mundo de todos os malefícios acima citados. O ensino técnico sepultará o capitalismo e o imperialismo.

Então, no lugar do capitalismo e do imperialismo surgiria uma nova classe dirigente? Seria a dos trabalhadores, os empregadores seriam varridos do mapa? Nessa sociedade dirigida pelo proletariado, haveria apenas dirigidos, sujeitados ao trabalho, ao ensino técnico? Por quem? Proletários mandando em proletários, modernamente todos eles capacitados para o trabalho...

Note-se que não há nenhuma menção à liberdade, à ascensão social, nem à situação de países que supostamente se livraram do capitalismo, nem que o comunismo tenha sido e seja cruel, responsável por ditaduras, pela opressão, pela censura. 

Esse tipo de educação ideológica que vê dois inimigos, capitalismo e imperialismo, leva à abominação de todo um sistema global sem oferecer uma crítica efetiva e coerente. Analisar a realidade, apontar sim injustiças, mostrar que os discursos salvadores só servem para os próprios locutores, que há valores, como o de ser livres e autônomos, que há um sistema produtivo, inovador, um irrefreável avanço tecnológico, e que um dos benefícios da modernidade é a possibilidade de comunicação, de circulação de ideias, de responsabilidade social.  Nas sociedades democráticas há debate e confronto de ideias, é possível e salutar denunciar todo tipo de opressão, em especial no caso da educação, a implantação de ensino para "reformar consciências", com palavras de ordem fáceis de digerir retiradas das ideologias de Lênin e Gramsci. 




quarta-feira, 12 de fevereiro de 2025

A incansável alma humana

 Desde os primeiros balbucios da fala, o uso de toscos instrumentos, grupamentos em aldeias, houve uma evolução impressionante até a linguagem computacional, a exploração espacial e mísseis teleguiados. Milênios da história humana se passaram. 

Contrastes há até hoje: tecelões e artistas produzem ao lado de fábricas automatizadas, o carrinho de mão serve ao mesmo tempo que automóveis conduzidos por robôs fazem sua estreia. Há vilas e aldeias nas quais casas não precisam de grades e alarme, mas a segurança é cada vez mais reforçada nas cidades, nos prédios, nas ruas vigiadas por câmeras. Há neste instante um salvamento heroico e um covarde ataque a uma escola. O saber é transmitido por meio de livros, das cátedras, um poeta inspira, enquanto um grupo se arrisca em prédios para pichar as paredes com garatujas indecifráveis. O caminhão recolhe o lixo, garis se equilibram na traseira, um deles sorri para um passante, na outra ponta entulhos são despejados em terrenos, da janela de um luxuoso automóvel um papel de embrulho é jogado fora, na praia a família deixa para trás sacos plásticos. Um fiel se ajoelha e reza, faz seus pedidos, no mesmo templo um projétil é lançado porque aquele não é o seu deus. No mesmo globo, a diarreia mata, na outra ponta a ciência busca a cura para o câncer.  Em um campinho meninos se reúnem para uma pelada, no outro lado a disputa pelo Superbowl, com ingressos a 40 mil reais. 



Alçar voos, engrandecer, enveredar por caminhos, subir montanhas, estabelecer contatos, navegar, explorar novos povos e civilizações, a aventura humana não mais tem o privilégio do pioneirismo. Cada pedaço desse planeta já foi ou está sendo mapeado. Isso não resultou em respeito e nem direito de um povo de se autodeterminar e nem de se estabelecer. O mundo é um só, mas sem nenhuma organização forte o suficiente, respeitável, com legítima autoridade, com força e poder para se fazer ouvir e tomar decisões acertadas, equânimes. Pelo contrário, a política internacional segue por caminhos tortos, perigosos, irresponsáveis. Desde primórdios houve guerra de conquista, dominar, invadir, restabelecer fronteiras, conquistar, essa história se prolonga até a atualidade.

Morro carioca dominado pelo tráfico, zumbis no centro de São Paulo, o usuário de cocaína na casa noturna refinada de alguma cidade onde a riqueza e a ostentação são a regra: duas pontas que no fim se unem e que são comandadas pelos produtores e pelos chefes do narcotráfico. A matéria prima do fentanil, por exemplo, droga que alivia a dor mas vicia e mata, é produzida na China, traficada para os Estados Unidos. Produtos que beneficiam, produtos que sabidamente viciam, importa apenas vender, fazer preço, exportar. Dane-se o uso. 

Não vamos aprender nunca?! A estrutura mental oscila entre Eros e Thanatos, entre o prazer e a dor, entre a realização e a destruição, entre a sanidade e a loucura, entre a vida e a morte. Esses são os parâmetros mais gerais e indestrutíveis da alma humana. Em busca de solução e do sábio meio termo, pressionados por ambição, poder e glória, prosseguimos, bilhões de vidas formigando num planeta solitário. Pode ser que a sabedoria um dia seja a prática entre políticos, chefes, mandatários; pode ser que líderes religiosos conduzam crentes por caminhos de mútua compreensão; pode ser que as bases da educação beneficiem crianças e jovens no mundo todo; pode ser que a arte, a música e o lazer sejam compartilhados por muitos; pode ser que o fanatismo seja desmascarado; pode ser que esquerda e direita não sejam a única opção.

Pode ser, a alma humana é incansável.