segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Sobre a diferença entre os conceitos "transcendente" e "transcendental"


É comum não só alunos de filosofia, mas por vezes também profissionais, confundirem transcendente e transcendental.

São conceitos absolutamente importantes para a filosofia. O primeiro se refere a tudo o que não pode ser alcançado pela experiência. Mas o que a experiência pode alcançar? Todo contato nosso com a realidade exterior depende da experiência que fazemos com o mundo por meio de nossos sentidos, de nosso aprendizado, de nosso modo de ver e de significar as coisas. Assim, o que transcende a experiência pode apenas ser pensado, intuído, até mesmo desejado. Por exemplo, as divindades.


Zeus e Hera: o mundo mítico



Para todos os povos e culturas, seres divinos são superiores a nós, são absolutamente transcendentes. Se pudéssemos atingi-los pela experiência, não seriam entidades cultuadas pela religião ou consideradas como forças às quais não temos acesso direto.

Um exemplo de transcendência na filosofia, é o mundo das ideias de Platão, feito de puros e imutáveis conceitos. Outros exemplos do que nos transcende e nos leva para além do que se pode mudar, tocar, medir, etc., são os sentimentos. Amor, ódio, satisfação, medo, em certo sentido, não podem ser dominados, então, pode-se dizer que nos transcendem (mas tenho minhas dúvidas sobre isso).

Quanto ao "transcendental", nada tem de superior ou inacessível. Pelo contrário, as formas transcendentais são necessárias para "apanhar", para "pescar" todo e qualquer tipo de experiência, é impossível haver conhecimento do que nos cerca sem o transcendental.

Em filosofia, é Kant o grande filósofo das formas, conceitos e categorias transcendentais, tais como as formas da sensibilidade, a de tempo e a de espaço (para pôr os seres em data e local determinados); e categorias como a de causalidade, a de possibilidade, a de negação. Para se saber que algo ocorre, de determinado modo, por determinada causa, são necessárias essas categorias. O que, como, quando, por que, é desse modo que a realidade é "formatada" a priori, isto é, as coisas são caóticas, é preciso que sejam "arrumadas" a priori, antes pelo nosso entendimento, para depois haver conhecimento de um fato ou acontecimento.

Enquanto Kant adota o transcendental como forma atemporal e necessária, há filósofos, como Habermas, para quem o conceito de transcendental pertence à linguagem e não ao puro entendimento ou à pura razão.

Para alguém fazer um pedido ou uma promessa, ou afirmar algo ("Levarei você ao cinema no fim de semana"), devem ser satisfeitas certas condições como o outro compreender do que se trata, o compromisso carregado na promessa, culturas em que prometer requer cumprir. Quando uma dessas exigências não se cumpre, o ato de fala não atingiu o objetivo que é comunicar ao outro uma promessa.
Assim, verdade, veracidade, acatar normas e regras culturais, são condições para comunicar algo a alguém com sucesso. Faz parte da saída da humanidade do estado de selvageria.

Em resumo: o transcendente é tudo o que a experiência não pode alcançar; já o transcendental dá condições para haver a experiência, como na lida diária com as coisas e acontecimentos, seja a de um cientista, seja a de um artista, seja a de um carpinteiro.

Montagem de fôrmas em carpintaria

4 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Inês, tenho uma dúvida quanto a esses conceitos na arte. É o seguinte: para Kant 'intuição é conceber as coisas no tempo e no espaço.' Então a intuição é transcendente? E a obra acabada é transcendental?

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  3. Oi Ivone: o conceito de intuição para Kant não tem a ver com o aquilo que habitualmente chamamos de intuição, ou seja, uma espécie de "visão interior". Para Kant intuição é a necessidade que o entendimento tem de pôr as coisas e acontecimentos no tempo e no espaço, que são para ele formas da sensibilidade, isto é, possibilita nossas experiências com o mundo. É o que ele chama tb de "Estética Transcendental"
    Uma obra de arte acabada ocorreram todos os processos de criação, nela há formas e conceitos, por isso pode-se dizer sim, que nela deve haver o transcendental.

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  4. Inês,
    Muito boas suas explicações.Estudo filosofia e linguagem há décadas (autodidaticamente, desde que deixei a faculdade psicolgia)e confesso estar sempre hesitando em alguns conceitos escorregadios, como esse de transcendente x transcendental.Estava condicionado a ver da forma justamente oposta. A palavra "transcendental" é que me parecia conter uma forte carga de sobrenaturalidade, do mundo apenas intuído e jamais atingido.

    Paulo Motta.

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