segunda-feira, 21 de abril de 2025

Onde liberdade tem um valor incomum.

 Meninos com metralhadoras, meninas obrigadas à exclusiva tarefa da tecelagem, proibidas de frequentar a escola. Esse cenário é atual, no Afeganistão com seu povo oprimido, que passa das mãos de um regime para outro, que sofreu com uma guerra sem sentido, cruel para ambos os lados, o exército americano foi retirado, o caos só aumentou sob o Talibã.

As questões éticas, os fundamentos da cultura ocidental, as raízes da liberdade de ação, de credo e de representação política, instauradas desde há séculos na democracia ateniense, sofreram revezes, mas  foram restaurados na Inglaterra liberal, na França com o iluminismo, praticados por ampla maioria dos países desde há mais de dois séculos. Como é possível que nações avancem e outras populações vivam sob regime de terror, perseguição, violência em lutas tribais? Ditaduras cultuadas como legítimas calam seus opositores, há pobreza e fome, doenças curáveis grassam grupos e famílias.


Ruth Pfau


Ruth Pfau, personagem pouco conhecida, foi médica e freira que se dedicou à tarefa missionária nas décadas de 70 até os primeiros anos do século XXI, no Paquistão. Os relatos em sua autobiografia chocam, e ao mesmo tempo dão esperança, devido à sua luta por recursos destinados pelos organismos de saúde, por doações, pela ajuda dos médicos sem fronteira. A luta particular da freira-médica é contra a lepra, sim, lepra que grassava entre a população pobre do Paquistão. Certa região, Ranikot, sofria há três anos sem chuva, estradas empoeiradas, quando havia estradas, sua peregrinação era ir de casa em casa, verificando a situação de crianças que perdiam mãos, pés, de seus pais vivendo em barracas, com fome e sede. A atividade principal, o pastoreio de cabras. Ela narra que nos anos 80, houve a visita de uma equipe de TV da Alemanha, trabalharam e viveram juntos algum tempo, seus equipamentos conduzidos no lombo de burros, único modo de se transportar, mas que à época já rareava nessas montanhas pedregosas, onde dormiam no chão. Algum tempo depois Ruth e seus auxiliares viram a reportagem na televisão, com o título: "O que eu ganho é liberdade". Liberdade repete Ruth no livro "Das Herz hat seine Gründe" (O coração tem suas razões), foi a resposta que os pastores de cabra de Ranikot deram à pergunta: o que mantém vocês neste mundo perdido, seco e pedregoso? Eles disseram: "Liberdade".

A médica-freira se perguntou: o que fazemos nós neste vale perdido, seco, há duas semanas compartilhando a pobreza extrema na cabana deste pastor? Ela reponde igualmente para si mesma: "Liberdade". Sua escolha foi livre, sua missão compensa, a lepra acabou por ser controlada, ainda que não a pobreza.

Aceitar seu destino, abraçar sua causa em duas perspectivas inteiramente opostas: meninas a tecer tapetes e meninos que carregam uma metralhadora Kalashnikov, como dever, por imposição, sem escolha. Aceitar seu destino, abraçar sua causa, com escolha, livremente, mesmo em situação de fome, seca, miséria e doença. Essa é a que vale.

domingo, 13 de abril de 2025

Alguém pode explicar o significado de "racismo climático"?

 Desde há muito tempo se discute o Ensino Médio, a reforma que o tornaria eficiente, atrativo, com preparação para o ingresso no Ensino Superior, como formação integral de cidadãos aptos para participação na sociedade, especialmente no mundo do trabalho.

Uma vez mais a interferência justamente do Conselho Nacional de Educação, dá provas de que ajustar o ensino aos movimentos identitários e de valorização das diferenças, contra as representações machistas e eurocêntricas, entre outros objetivos, é mais relevante do que o reforço no aprendizado de disciplinas fundamentais para a formação, para o que se chama, ainda de "educação". Educação compreende habilitação profissional juntamente com a formação pessoal e intelectual, com valores, liberdade de pensamento, espírito crítico, criatividade, capacidade de inovar, de empreender. O mercado de trabalho não é um "bicho papão". A  própria educação é formadora, proporciona experiências diversas, um aluno assim consciente se torna capaz de evitar sectarismo, intolerância, desrespeito


Pauta aprovada por 10 dos 11 conselheiros


Por isso não é absolutamente necessário incluir as tais pautas elaboradas pela resolução do Conselho, por exemplo, a "perspectiva feminina", "superação das dinâmicas que conectam as desigualdades interseccionais relacionadas às posições de classe, gênero e raça, aos marcadores  sociais da deficiência e aos processos de segregação territorial e racismo climático (grifo meu)". Como seria a "construção do conhecimento filosófico" a partir "de grupos historicamente marginalizados"?! Desconheço a contribuição filosófica desses grupos, desconheço quais seriam tais grupos.

Conceitos da novilíngua que assola vários setores da sociedade, que inverte valores, que obriga à adoção de políticas que redundam em efeito contrário ao pretendido, acabam por marcar território onde não deveria haver território algum, que particularizam quando a educação deve primar pela universalização, que pretendem incluir, mas que segregam

Isso tudo ocorre em um momento histórico, social e político que vai em direção à uniformização, ao "siga o chefe", ao conformismo explícito nas redes sociais de ser consumidor, de acatar, de cultuar ídolos, de incentivar o corpo, sua forma, a mulher captada em uma imagem idealizada, magra, rosto liso, lábios proeminentes, seios e lábios mais ainda. Esse deveria ser um tema relevante a ser discutido nas escolas, mas não...

Escolas precárias, professores mal pagos e com carência em sua formação, essa sim deveria ser a pauta do Conselho Nacional de Educação.

terça-feira, 8 de abril de 2025

O que é melhor, ler o livro ou ver o filme?

 Poucas vezes uma adaptação de livro fez tanto sucesso como "Ainda estou aqui". Vi o filme, depois li a obra de Marcelo Rubens Paiva. Evidente que são duas linguagens, duas artes em tudo diferentes, cada qual com seu impacto, cada qual com sua mensagem.

Se tivesse que decidir diria: primeiro veja o filme, depois leia o livro. A notoriedade, as premiações tornaram Walter Salles e Fernanda Torres pessoas incensadas pela mídia, torcidas se formaram no país antes chamado de "país do futebol", alvoroço geral, que um dia termina e vai parar na TV paga. O livro, cuja primeira edição tem dez anos (2015), no país de pouca leitura, acabou sendo reimpresso treze vezes.

Uma casa, uma mãe, seus cinco filhos, a prisão do pai em 1971, ex-deputado cassado em 64, a prisão por doze dias da mãe, incomunicável, sem saber a razão de seu sequestro. Libertada, enfrenta o entra e sai de vigias na casa fechada e guardada. Onde antes havia uma família realizada e unida, o olhar resignado de Eunice na cena da confeitaria dirigido às pessoas na mesa em frente em contraste com a dela agora desfeita. Essa é a história que Salles apresenta: a luta de Eunice capaz de enfrentar e exigir a verdade acerca do paradeiro do marido, uma luta que só teve fim com o fim da ditadura,  finalmente o atestado de óbito em mãos. 

O livro: o escritor Marcelo Rubens Paiva nada tem de pretencioso, nem de estritamente literário, mas a escrita é honesta, sem firulas, um memorialista que não só denuncia crime e tortura, ele analisa a relação com a mãe, sincero, desapaixonado, mira ora um lado ora outro da história, se indigna por que razões o pai não foi cauteloso e levou toda a família para o exílio como outros fizeram? 


O escritor Marcelo Rubens Paiva


O Doi-Codi era implacável, ser fichado, preso, torturado e morto, o corpo desaparecido, a narrativa forjada de que o pai fugira. Quem era o inimigo, para perseguir quem? Os comunistas. Quem eram os comunistas? Marcelo responde: "um bando de golpistas e fascistas" (atentar para os adjetivos...). O que levou o pai à prisão? Cartas que duas mulheres trouxeram após visitas a parentes exilados no Chile, cartas escondidas no corpo, e num envelope o número do telefone da casa de Rubens Paiva. Foi levado preso, torturado durante 24 horas, pedindo socorro e seus medicamentos. Uma carta... E tudo isso para salvar o país dos comunistas...

Marcelo tinha apenas 11 anos, foi levado para um sítio. É da perspectiva dele que Eunice se mostra distante, viúva aos 42 anos, teve que trabalhar, o filho lembra dela lendo, lendo sem parar, obcecada pela magreza, formou-se em direito, viveu da profissão, defensora da causa indígena, colaboradora com a política preservacionista do Banco Mundial, tudo isso o escritor aprova: "ninguém queria uma mãe num luto eterno". Pelo menos o atestado de óbito! Este veio em 1996.

Há páginas contundentes contra a violência da tortura, com ditadura longa e cruel. O mais tocante é a experiência dos filhos anos mais tarde com a doença incurável de Eunice, o mal de Alzheimer. Como pode alguém atuante, leitora, advogada de sucesso, perder tudo isso? A descrição no livro é detalhada, pungente, a decadência mental, a confusão, apenas alguns lapsos em poucos momentos, o breve sorriso quando o neto, filho de Marcelo, é posto em seu colo. Um breve sorriso. O sentido do título do filme/livro se esclarece, mesmo no estágio III (são quatro estágios) da doença, a mãe ainda está aqui. Ainda que por instantes...