Meninos com metralhadoras, meninas obrigadas à exclusiva tarefa da tecelagem, proibidas de frequentar a escola. Esse cenário é atual, no Afeganistão com seu povo oprimido, que passa das mãos de um regime para outro, que sofreu com uma guerra sem sentido, cruel para ambos os lados, o exército americano foi retirado, o caos só aumentou sob o Talibã.
As questões éticas, os fundamentos da cultura ocidental, as raízes da liberdade de ação, de credo e de representação política, instauradas desde há séculos na democracia ateniense, sofreram revezes, mas foram restaurados na Inglaterra liberal, na França com o iluminismo, praticados por ampla maioria dos países desde há mais de dois séculos. Como é possível que nações avancem e outras populações vivam sob regime de terror, perseguição, violência em lutas tribais? Ditaduras cultuadas como legítimas calam seus opositores, há pobreza e fome, doenças curáveis grassam grupos e famílias.
Ruth Pfau
Ruth Pfau, personagem pouco conhecida, foi médica e freira que se dedicou à tarefa missionária nas décadas de 70 até os primeiros anos do século XXI, no Paquistão. Os relatos em sua autobiografia chocam, e ao mesmo tempo dão esperança, devido à sua luta por recursos destinados pelos organismos de saúde, por doações, pela ajuda dos médicos sem fronteira. A luta particular da freira-médica é contra a lepra, sim, lepra que grassava entre a população pobre do Paquistão. Certa região, Ranikot, sofria há três anos sem chuva, estradas empoeiradas, quando havia estradas, sua peregrinação era ir de casa em casa, verificando a situação de crianças que perdiam mãos, pés, de seus pais vivendo em barracas, com fome e sede. A atividade principal, o pastoreio de cabras. Ela narra que nos anos 80, houve a visita de uma equipe de TV da Alemanha, trabalharam e viveram juntos algum tempo, seus equipamentos conduzidos no lombo de burros, único modo de se transportar, mas que à época já rareava nessas montanhas pedregosas, onde dormiam no chão. Algum tempo depois Ruth e seus auxiliares viram a reportagem na televisão, com o título: "O que eu ganho é liberdade". Liberdade repete Ruth no livro "Das Herz hat seine Gründe" (O coração tem suas razões), foi a resposta que os pastores de cabra de Ranikot deram à pergunta: o que mantém vocês neste mundo perdido, seco e pedregoso? Eles disseram: "Liberdade".
A médica-freira se perguntou: o que fazemos nós neste vale perdido, seco, há duas semanas compartilhando a pobreza extrema na cabana deste pastor? Ela reponde igualmente para si mesma: "Liberdade". Sua escolha foi livre, sua missão compensa, a lepra acabou por ser controlada, ainda que não a pobreza.
Aceitar seu destino, abraçar sua causa em duas perspectivas inteiramente opostas: meninas a tecer tapetes e meninos que carregam uma metralhadora Kalashnikov, como dever, por imposição, sem escolha. Aceitar seu destino, abraçar sua causa, com escolha, livremente, mesmo em situação de fome, seca, miséria e doença. Essa é a que vale.