quarta-feira, 12 de outubro de 2011

O empreendedor e o caminhante: para celebrar o dia das crianças

Até para crianças as escolas, em geral as particulares, treinam para que elas sejam futuras empreendedoras. Quer dizer, aptas para vencer no mundo dos negócios, há que saber organizar, planejar, investir em uma carreira, como se diz, "sólida", leia-se "lucrativa".
Certamente escolas formam em dois sentidos, o da pessoa e seus valores, seus projetos, sua realização; e no sentido profissional, a necessidade de uma habilidade, seguir uma vocação, aliar seu sustento com o prazer de trabalhar, de exercer uma atividade compensadora.
Houve, portanto, um desvio da função educacional, para um objetivo estratégico. No mundo dos negócios é preciso usar técnicas vencedoras de empreendedorismo. E isso foi projetado para o universo infantil: dá-se excessivo valor à capacidade da criança de iniciativa, de jogar e vencer, desenvolver uma capacidade no sentido de expertise, uma logística, um cálculo.
Mas, se não houver lugar para a reflexão e para questões como gosto pessoal, fruição da vida, a pergunta essencial sobre o sentido do que se faz, e mesmo sobre a relevância e o valor das escolhas éticas e profissionais, não há por acaso o risco de transformar as crianças em adultos que agem enquanto executivos, gerentes, negociadores? 

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Rousseau (1712-1778) foi péssimo marido e pai de família, pelo menos pelo ângulo da atualidade. A mãe morreu no parto. Na infância foi um leitor voraz, e quando adulto teve uma vida amorosa tumultuada. Escreveu sobre arte, política, educação infantil, romances; compôs peças musicais. Instável no trabalho e com suas finanças, um aventureiro, um romântico e, no fim da vida, sofreu com perturbações, mania de perseguição. Em sua autobiografia com mais de mil páginas, Confissões, revela os motivos mais profundos que o impulsionaram.
No fim da vida, mais calmo, escreve sobre a natureza, seus devaneios, seus passeios, despreocupado, reconciliado, talvez feliz. Em Devaneios de um Caminhante Solitário  Rousseau mostra que a vida pode ser simples, poética, que é agradável e prazeroso caminhar, contemplar, deitar-se na relva, olhar o céu e perder-se no azul imenso.
As crianças precisam disso: que lhes seja ensinado contemplar, ter paciência, caminhar, passear. E também ler, aprender e saber usufruir disso. Atividades que não exigem nada em troca, sem obrigação alguma.

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Escreve Rousseau em Promenades:
Tout est dans un flux continuel sur la terre : rien n'y garde une forme constante et arrêtée, et nos affections qui s'attachent aux choses extérieures passent et changent nécessairement comme elles. Toujours en avant ou en arrière de nous, elles rappellent le passé qui n'est plus ou préviennent l'avenir qui souvent ne doit point être : il n'y a rien là de solide à quoi le coeur se puisse attacher. Aussi n'a-t-on guère ici-bas que du plaisir qui passe ; pour le bonheur qui dure je doute qu'il y soit connu. A peine est-il dans nos plus vives jouissances un instant où le coeur puisse véritablement nous dire : Je voudrais que cet instant durât toujours ; et comment peut-on appeler bonheur un état fugitif qui nous laisse encore le coeur inquiet et vide, qui nous fait regretter quelque chose avant, ou désirer encore quelque chose après ?
Arrisco traduzir essas reflexões do caminhante:
"Tudo está em fluxo contínuo sobre a terra: nada retém uma forma constante e parada, e nossas afecções que se ligam às coisas exteriores passam e mudam necessariamente com elas. Sempre antes ou atrás de nós, elas nos lembram o passado que não é mais ou preveem o futuro que no mais das vezes não deverá ser: nada há nisso de sólido com que o coração possa criar laço. Do mesmo modo temos aqui embaixo tão somente o prazer que passa; quanto à felicidade que dura, duvido que ela seja conhecida. Pelo menos haveria em nossos mais vívidos prazeres um instante em que o coração pudesse verdadeiramente nos dizer: Eu gostaria que este instante durasse sempre; e como se poderia chamar felicidade um estado fugidio que nos deixa ainda o coração inquieto e vazio, que nos faz lamentar um acontecimento passado ou desejar ainda algo depois?" (Rousseau, 5e. Promenade).

Um comentário:

  1. Bela reflexão.
    Nossas crianças... Afinal o que ser criança nos dias de hoje???

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