quarta-feira, 26 de novembro de 2025

O êxtase

Sentir a vida, o ser palpitando no corpo, nas sensações e na percepção do infinito, do zênite, tentar alcançar o inalcançável, saber que é inalcançável e mesmo buscá-lo, esse é nosso feitio, procuramos decifrar, inventamos meios incríveis para nossa adaptação, subitamente nos deparamos conosco, feitos de carne, osso, de mente e de ação, fracos, frágeis, ao mesmo tempo fortes, imbatíveis. 

A perfeita sintonia com uma crença profunda que não requer resposta, que se basta, encontrar a beleza no voo de um beija-flor, nos primeiros passos da criança, arrepiar-se com o badalar de sinos, por vezes, raras vezes, somos capazes de experimentar o êxtase, um estado em que corpo e mente se confundem, se harmonizam, se conjugam. 

No êxtase místico a ênfase é na religiosidade, na espiritualidade, trazer para si o divino. Um dos exemplos mais notórios é o de Santa Teresa d'Ávila (século 16), seus escritos "O Castelo interior", "O Caminho da Perfeição" narram as experiências de êxtase místico, profunda união com Deus. Santa Teresa fundou várias ordens mendicantes, em suas orações sentia-se levitar.


O êxtase de Santa Teresa , obra de Bernini, século 17

No êxtase estético a ênfase é na harmonia encontrada em obras de arte, a estátua de mármore que parece palpitar como se de carne fosse; a música vibrante de uma orquestra no momento em que entra a soprano; o nenúfar no lago de Monet; o pairar no ar de um pas de deux ; o ângulo de um arquiteto que recria um ambiente.

O êxtase produzido pela natureza, como o vislumbre de uma brecha que descortina a paisagem; o dia que surge, a escuridão que cede à claridade; o som da queda d'água que aos poucos se torna nítido, mais alguns passos ei-la; o horizonte marinho, encontro de céu e mar.

Recepcionar isso tudo: o tempo vivido, tempo no qual o mundo se abre, o mistério de tudo simplesmente existir, a diversidade, como nossa compreensão precisa de recursos, linguagem, corpo, presença, decifração, criações. O eterno apresenta-se no momento único em que nos sabemos mortais, momento este de uma epifania, de uma revelação, de um apaziguamento. 

Despertos de sonhos nos perguntamos, como pareceu tão real? Se sonho, então irreal? Em que sentido? Impossível sua não existência, afinal, o sonho foi lembrado. Sonhar acordado... 

A condição humana intriga, vai desde o mais comezinho sentimento de raiva, de ódio, até o mais sublime sentimento de graça, leveza. Esse bípede que evoluiu neste planeta por obra do acaso, em certas circunstâncias, aos tropeços, vingou como ser pensante, que subiu a um morro e decretou dez mandamentos, que escreveu epopeias, que guerreou e ergueu a bandeira da vitória, é o mesmo ser pensante que criou fronteiras, barreiras, incompreensão, discriminação.

Ser que não para nunca de buscar, de dominar o acaso, prevenir, corrigir, produzir, destruir, abrigar-se, vencer. Ser que, em raros momentos se vê diante de si mesmo, e, no espelho de si próprio descobre-se mortal. Essa revelação extasia.

terça-feira, 18 de novembro de 2025

Sêneca e a Louis Vuitton

 Segunda-feira, dia 17 de novembro de 2025, à 1:30 da manhã, a loja/depósito da Louis Vuitton foi roubada. Na rua lateral à Via del Condotti, um carro foi arremessado à porta, a preciosa mercadoria foi levada sem deixar vestígios. 




Sêneca (47? a. C. - 65 d. C.) nasceu em Córdoba, foi educado em Roma desde cedo, se tornou advogado e membro do senado romano. Despertou a inveja do imperador Calígula, só não foi morto porque Calígula considerou que a frágil saúde de Sêneca o levaria, e o poupou. Ironia, Calígula morreu antes de Sêneca. Este incomodava outro imperador, Cláudio, que o desterrou para a Córsega, onde passou nove anos sofrendo privações. Foi escolhido para educar Nero, que acabou por também perseguir Sêneca, condenando-o ao suicídio induzido.

Essas agruras não o impediram, pelo contrário, talvez até mesmo o tenham estimulado a uma vida austera, bem como à filosofia estoica, especialmente a ética das virtudes.

O tema central de seu pensamento, a tranquilidade da alma, a vida doméstica, a possibilidade de "a alma caminhar numa conduta sempre igual e firme (...) sem se afastar de sua calma, sem se exaltar nem se deprimir", sem precisar lamentar o estado de repouso, nem lamentar-se por não ter nada para fazer, tampouco "invejar furiosamente todos os sucessos do próximo". O remédio: tornar-se útil, consagrar-se aos estudos, praticar ações virtuosas, avaliar a si próprio, "habituar-se a ter o luxo à distância e a fazer uso da utilidade dos objetos e não de sua sedução exterior (...), aprendamos a cultivar em nós a sobriedade (...), a reprimir nossa vaidade" (in Da Tranquilidade da Alma).

Imaginemos Sêneca despertado de seu sono eterno, a passear e meditar pelas ruas de Roma. Ao se deparar com o movimento na famosa avenida, policiais e um grupo de curiosos, pergunta em uma mistura inteligível de latim e italiano, o que acontecera.

- Levaram toda a mercadoria da loja, responde um transeunte.

- Qual era essa mercadoria? indaga o filósofo.

- Bolsas de luxo, feitas manualmente em couro, com inscrição em letras douradas LV.

- Por que são tão preciosas a ponto de serem roubadas?

- São artigos caríssimos, que apenas mulheres muito ricas e vaidosas exibem onde quer que vão.

- Não entendo, como é possível um artefato em couro despertar tanta cobiça!

- A marca conta muito.

Sem compreender o sentido de "marca", objeto de desejo e luxo despertado por um artefato de couro, o filósofo segue em silêncio seu caminho de volta para o repouso eterno. Em seus pés, apenas sandálias.

quinta-feira, 6 de novembro de 2025

A hipocrisia, a má-fé, a boa-fé.

A má-fé e a boa-fé se distinguem da hipocrisia.

A má-fé é intencional, aquele que assim age o faz de propósito para prejudicar alguém, o engano produzido pode levar a consequências desastrosas, por exemplo, perda de emprego de um colega, constranger alguém nas redes sociais, dar falso testemunho. São atos com sérias consequência, mas que podem ser revertidos.

A ação de boa-fé, às vezes confundida com uma ação ingênua, revela, ao contrário, firmeza de caráter, correção, atenção, cuidado.

Pois bem, o hipócrita não age nem com má-fé, nem com boa-fé. O hipócrita é o rei do disfarce, leva os outros a  crerem em seus princípios morais, religiosos, éticos, políticos, que ele é um excelente cidadão, que sua pessoa está sempre aberta para ouvir e acolher a todos, sem distinção. Ele ostenta os louros do bom caráter, ele nunca mente, nunca engana, que seu caminho é o do bem, que os outros é que não o compreendem, que sua fé é legitima, que a fé alheia precisa de comprovação. 

Ao ser contestado, o hipócrita lança mão de subterfúgios, ignora argumentos ou a ação daqueles que expõem suas atitudes e valores à luz dos fatos, da razão, da moral. Ao recobrir mau carácter com um manto de santidade ele convence os incautos ou aqueles que comungam de seus pontos de vista. De frente se mostra cordato, simpático, pronto para angariar a confiança, ganhar votos, distribuir favores. Por trás ele sabe perfeitamente que engana, que ludibria, que seu discurso é lustroso, facilmente enganador, consegue com sucesso explorar os de boa-fé.

O hipócrita convence e engana pessoas que costumam agir de má-fé? Sim, pois seu discurso é de tal modo venenoso,  astucioso, ele se disfarça em pele de cordeiro tão bem que mesmo pessoas mal intencionadas caem na armadilha de suas palavras doces, impregnadas de cunho moralizante, discursos que o hipócrita muda conforme as circunstâncias, de acordo com as conveniências.




A hipocrisia resulta em desconfiança nas instituições, a sociabilidade fica comprometida. O hipócrita, matreiro, assim raciocina: o momento político pede que tipo de ideia, quais atitudes, que decisões convém tomar? Feitos esses questionamentos, ele se pronuncia, expõe, sem pudor suas decisões, ganha publicidade. Seus adeptos o aplaudem. Os de boa-fé são ludibriados.

Dá prestígio mudar discursos, apoiar causas nobres, isto é, aquelas que dão poder, evidência, publicidade, seguidores em redes sociais. Para que comprovar, de que servem compromissos se representar papéis dá resultado? Se o momento pede engajamento em causas ecológicas, e se é possível ignorar os reais prejuízos ao meio-ambiente, por que não aproveitar a chance de erguer essa bandeira? Se ganhar como garoto propaganda de banco prejudica a imagem, que tal aderir à causa religiosa? Usar termos fortes, acusadores, impactantes, é mais fácil e rápido do que analisar situações e apresentar soluções. Simular faz milagres.

Será que um dia a casa cai?