sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

O mito do herói

 As epopeias narram os feitos heroicos, Hércules, Teseu que venceu o Minotauro, Rômulo, Édipo. Há aqueles cujos feitos são históricos, como Moisés abandonado quando bebê em um cesto no Nilo, foi salvo, quando adulto conduziu seu povo para instaurar o monoteísmo.

Se hoje mencionamos feitos de um herói, salvo situações de salvamento, de luta em guerras de defesa, o que sobressai é muito mais o mito do que o heroísmo. Ao redor do mundo há dezenas de dirigentes que pretendem se perpetuar como mitos, quer dizer, fabulosos, capazes de se manter décadas no poder por meios tornados por eles próprios legítimos, no mais das vezes à revelia dos governados. Kim Jong-un recentemente mandou 11 mil soldados para ajudar o outro ditador, Vladimir Putin na guerra contra a Ucrânia, 4 mil morreram ou ficaram feridos; Lukashenko que se perpetua no poder na Bielo Rússia "silenciando" opositores; dezenas de mandantes que oprimem populações na África; eleições são fraudadas na Venezuela pelo chefete Maduro. Enfim, parece que as condições atuais na política mundial estão e permanecerão trágicas.



11 mil soldados norte-coreanos obrigados a lutar na guerra de Putin contra a Ucrânia.

Acresce que esses mandatários se consideram mitos, acima da lei, poderosos, oprimir seu povo não os abala. Mas, e se alguém renomear tal tipo de poder, renomear uma guerra de conquista como "ridícula"?

"Pare com esta guerra ridícula", a condenação feita por Trump a Putin reduziu toda e qualquer chance de considerar expansão de território da mãe pátria Rússia, saudosa da União Soviética, como conquista,  foi qualificada como teatro, circo, com a dimensão da piada. Ninguém ainda tinha pensado nisso, Putin como palhaço, ridículo, o oposto do herói mítico. Mas perigoso. Cômico se não fosse trágico, como se costuma dizer. Ditadores sanguinários se atribuem o poder de praticar injustiça e crueldade, expandir seu território sem considerar a soberania de um povo, a legitimidade do poder, opositores são envenenados. Seria "mito" no sentido de mistificador e não no sentido heroico.

Pior,  esses mandatários recebem apoio, tapinhas nas costas; sem levar em conta a situação histórica, prevalece o véu do autoengano, atêm-se a certo partido, a certa ideologia, o seu lado é sempre o do bem, o único verdadeiro. Resultados: divisão profunda, recusa de raciocinar, de acolher a realidade e suas implicações, indagar razões, apoiar-se em argumentos, trabalhar à luz dos fatos. 

Dirigentes ao redor do mundo perderam o passo, há atraso, insistência nos erros, censura, cegueira para os acontecimentos, seus juízos saem de sua própria cabeça, sem base alguma em análises, ocultam, prejulgam, seu olhar é sempre enviesado, torto. 

Sem deuses e heróis, sem epopeias para narrar, restam poucas conquistas, e sobram sofrimento, perseguição, aposta na desinformação conscientemente praticada,  mortandade em nome de um profeta, ilusão, acusações mútuas, ressentimento, ódio.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2025

Nietzsche e o sentido de "Deus está morto"

 Uma das frases mais famosas  da História da Filosofia é a de Nietzsche em seu anúncio da morte de Deus. O que isso significa, por que escandaliza e faz dele um autor "perigoso"?

Há que compreender as razões, o filósofo se considera o "primeiro imoralista", que dizer, destruidor de ídolos a marteladas, como o deus Dionísio, deus do devir, das transformações, inspirador da arte. A recusa de um ideal e pôr em seu lugar o real, livrar-se do sufoco da fé que cega, caminhar por si, com suas próprias forças, superar as dificuldades por meio de sua vontade, esses são os meios para a vida, uma luta em que se conta com as condições terrenas, com a capacidade de reagir. Isso Nietzsche experimentou com o sofrimento por doença, dores de cabeça terríveis, mas ele reagiu e assim se tornou mais forte. 

Fraqueza seria renunciar ao que podemos contar aqui, com as condições que se nos apresentam, as condições da terra, o que terreno fortalece, ele põe a vida em lugar do mundo espiritualizado, da cultura banalizada.

Os espíritos livres são doadores de sentido, isso torna compreensível o slogan "Deus está morto", que implica na recusa de desejar alguém que mande, "um Deus, um príncipe, uma classe, um médico, um confessor, um dogma, uma consciência partidária", afirmou Nietzsche. É um adoecimento da vontade esse "tu deves", o fanatismo que hipnotiza os fracos e inseguros, o sentimento de culpa, o medo, o temor da condenação da alma. Essas são convicções, não ocorre às pessoas livrar-se desses sacrifícios para resgatar sua liberdade e autoconfiança. Quanto menor for a vida vibrante e atual, maior a necessidade de Deus salvador, das promessas da vida eterna. 

Para ele, a morte de Deus representa o maior dos acontecimentos, a morte das crenças e da moral europeia, essa morte seria uma nova aurora, caminhos abertos para navegar e enfrentar todo perigo, sem a tortura do mal e do pecado, quando o que se tem é a natureza humana, em que há sofrimento. A não aceitação do sofrimento produz o desejo de redenção, de salvação, resultados do orgulho humano, de o próprio homem se considerar um Deus.

Como seria então para Nietzsche uma vida vibrante e "terrestre"? 

A busca do autocontrole, do silêncio e solidão, como ele próprio gostava, caminhar, contemplar do alto de montanhas . O mesmo acontece com o homem comum quando busca a paz de espírito, a nobreza da aceitação, do "é assim mesmo", a necessidade da elevação de si, a compreensão de que suportar o mundo real não é uma condenação que precisaria da redenção à vida eterna para a alma imortal. Importam as condições do mundo real. 

 Nietzsche apreciava caminhar no silêncio e solidão de Sils Maria, pequena cidade Suíça. 


Para quem pensa é mesmo indelicado supor Deus, um obstáculo para todos aqueles que não veem sentido algum na salvação; faz sentido alimentar a vida, dançar, alegrar-se, dar valor ao corpo, aos desejos, livrar-se do sentimento de culpa, os desejos não são impuros.

***

Ser "espírito livre", deixar o rebanho, parece cada vez mais complicado. Em nossos dias vemos hordas e mais hordas a gritar e a ameaçar, pessoas que veneram não só ídolos, mas o ideólogo do momento, o partido do momento, o retorno ao poder, o guru da moda. O grande perigo, afirmou Nietzsche, e isso vale inclusive para a atualidade, é quando a religião não opera para educar, disciplinar e passa às mãos obcecadas de tiranos que consideram sua crença como superior, única e suprema verdade. E, em nome de sua crença, perseguem, castigam, oprimem e matam.

sábado, 4 de janeiro de 2025

Reflexão filosófica: características principais

 Há características comuns às várias escolas filosóficas, tais como: apartidarismo; universalismo; análise conceitual; busca do que é essencial; pertencimento a uma escola de pensamento; fundamentação lógica, metafísica ou ontológica; razões para a existência humana; perspectiva ética; relação sujeito/objeto; bases do conhecimento.

A cada época, antiga, medieval, moderna e contemporânea, um ou outro desses temas é privilegiado. Assim a metafísica para os antigos e para os medievais, a teoria do conhecimento para os modernos, a condição da existência e a historicidade para as escolas mais recentes. O que não implica que um filósofo contemporâneo aborde temas metafísicos e ontológicos, nem que um filósofo na antiguidade não tivesse abordado questões políticas, como Platão, por exemplo. A diferença está na base, nos pressupostos. 

Os pressupostos dos filósofos gregos são o cosmo e sua origem, a busca da essência de tudo o que há, o pensamento racional e conceitual, a metafísica do ser, das causas e princípios. A esses temas, a filosofia cristã sobrepôs Deus.

O homem que pensa e conhece, seus limites e fundamentos, é tema dos modernos, como Descartes e Kant. 

A historicidade e finitude são questões contemporâneas, o ser humano em sua concretude e limites, o que há para esperar, ou confrontar; a ação política; a linguagem; a sociedade.

Na relação entre essência e existência, a filosofia clássica privilegia a essência, os mais modernos privilegiam a existência. Essência é o imprescindível, aquilo sem o que algo não é nem vem a ser. O vir a ser, as mudanças se devem ao que a essência contém em si, potencialmente. Não havia noção darwiniana de  transformação na cadeia evolutiva, pois cada ente atualiza apenas sua potencialidade. A capacidade de vir a ser está contida integralmente no próprio ser. A natureza faz brotar o que está em germe, pois do nada, nada pode provir. Os seres são o que são em sua essência, prontos, acabados, e, para os medievais, obras perfeitas do criador.


"Pensador" na versão de Mikhail Nesterov.

A Filosofia não morre enquanto houver um único ser pensante na face da Terra.

Na relação entre essência e existência, a filosofia moderna realça o ser humano pensante, sua existência concreta tem como essência o pensar, o cogito, a razão. Existir é deduzido do pensar, o homem em carne e osso ainda não tinha nascido, como observou Foucault em As Palavras e as Coisas. Ele ainda era sujeito de uma razão pura, sem os esquemas a priori ele não pode aceder às coisas e nem a si mesmo, pois que para tal depende de conceitos, como o de espaço e tempo. O transcendental kantiano pressupõe uma rede para ser e conhecer, e para a ação reta, para a moralidade, o pressuposto são princípios absolutos e necessários, como a noção de dever.

O homem contemporâneo nasceu quando Nietzsche anunciou a morte de Deus, quer dizer, o homem está só, e tem que se haver com sua fraqueza, seus valores inventados, seus limites, e esse foi um caminho que existencialistas e Heidegger seguiram. No outro lado estão as filosofias da historicidade, a concretude se deve às leis de mudança histórica, a base material do homem pode ser igualmente a melhor chance para sua redenção, uma vez que as condições históricas, sendo pelo próprio homem criadas, podem sem igualmente por ele mesmo modificadas, como pensara Marx.

Mas esse homem foi divinizado, essa materialidade virou seu destino, o da revolução salvadora. Há que chamá-lo de volta à terra. Terra de seus condicionantes, a sociedade, a linguagem, a produção, os anseios políticos, ao planeta em crise. Ainda assim a filosofia sobrevive, e la nave va.