quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Os espíritos livres

 Os espíritos livres alçam voo sem perder a noção de chão, de realidade, pois é a realidade das situações vividas que os move.

Os espíritos suscetíveis a condicionantes, ao contrário, seguem os impulsos, as idiossincrasias, os preconceitos. Ficam presos ao chão supostamente seguro, e desse chão não se libertam, isso porque a sensação de segurança, proporcionada pelo hábito, pelo já visto e já pensado, lhes basta. Ficam satisfeitos com certa crença, credo, doutrina, líder. Importam-se mais com as opiniões e revelações de um(a) influenciador(a) do que olhar para dentro de si. Assim, seu modo de ser e de pensar se define, se solidifica.

Qual é o problema? Afinal não seria esse um modo tranquilo de viver, sem precisar de compromissos?!

Essa sensação de acomodamento, de que tudo flui e sempre para o melhor, é falsa, em geral temporária. Por isso mesmo, quando acaba a segurança do já visto e do já dito, a busca frenética por um novo território de opiniões estabelecidas e de fácil digestão é buscado e facilmente encontrado. E ali se instalam, confortavelmente.

Para os espíritos livres não há permanência, a luta é perpétua, o final é um recomeço, a coragem de enfrentar e de expandir seu horizonte, de percorrer caminhos inéditos, de empreender a mais longa e arriscada jornada não esmorece sua vontade. É que sua vontade é livre de condicionamento, de convenções e de ordens superiores. Não se deixa levar por ídolos, sejam eles midiáticos, doutrinários ou ideológicos.


A determinação solitária da sherpa que escalou o Everest (documentário na Netflix)


Sua marca é a busca da criatividade, tal como se ele fosse seu próprio artesão, o construtor de seus valores, de suas metas, de seus ideais. A autodeterminação os move, as escolhas são deliberadas, e isso não os impede de respeitar e procurar entender aqueles que seguem lideranças e convenções cegamente. Deles se afasta com cuidado, pois sabe que contra a cegueira, a escravidão e o aprisionamento às receitas e a insegurança que a necessidade de afirmação produz, de nada valem os argumentos.

Há os que se arrogam serem livres, mas estes "gostariam de perseguir com todas as suas forças é a universal felicidade do rebanho em pasto verde, com segurança, ausência de periculosidade, comodidade, facilitação da vida para todos; (...) os que abrem o olho perguntam como a planta "homem" cresceu mais vigorosamente, foi sob condições adversas (...) em nossa mais profunda solidão, tal espécie de homens somos nós, os espíritos livres" (Nietzsche).




domingo, 4 de agosto de 2024

A intolerância religiosa

Famoso escritor de origem indiana, educado e estabelecido em Londres, com 76 anos, sofreu um ataque quase mortal a facadas, no estado de Nova York, em 12 de agosto de 2022.

Trata-se de Salman Rushdie. Autor de 17 romances, entre eles aquele que provocou o ataque, Versos Satânicos, com paródias que levaram a sua condenação pelo líder iraniano, Khomeini, por injúria e difamação ao islamismo. Durante anos ele precisou se proteger. Mudou-se para Nova York, casou-se com a poetisa Eliza Griffiths, passou a levar vida tranquila. Aceitou o convite para uma palestra em Chautauqua (estado de NY). Mal começou seu discurso quando avistou alguém correndo em sua direção, recebeu 17 facadas, tentou se defender, levou facada na mão (que ficou comprometida) e uma delas perfurou sua vista direita.




Foi salvo como que por milagre, disseram os cirurgiões. Muitos meses de recuperação, com a presença constante e o cuidado extremo de sua mulher, passou a escrever Knife, Meditations After an Attempted Murder (Faca, Meditações após uma Tentativa de Assassinato), publicado neste ano, 2024, com tradução por editora portuguesa.

Além da detalhada descrição de seu sofrimento e lenta recuperação, mostrou como é ficar diante de alguém que te esfaqueia até a morte, ver a morte de bem perto. E perguntar-se, como é possível que um jovem criado nos EUA, decide décadas depois de sua condenação (absurda, diga-se), armar-se e desferir um golpe após o outro?

O jovem recusou-se a encontrar-se na prisão com o escritor. Salman então imaginou um diálogo com o rapaz, e esse diálogo gira em torno ao absurdo de uma religião, de uma crença, condenar à morte alguém que escreve romances, isto é, literatura, e literatura faz pensar, faz imaginar! A ficção lança na realidade como que uma luz, que leva a novos caminhos, nova compreensão do que nos sujeita, da condição humana, de nossos desejos e do sentido de nossas vidas.

Salman Rushdie é ateu, o que à primeira vista choca, causa incompreensão e indignação. "Não preciso de fé religiosa para me ajudar a compreender e lidar com o mundo" (p. 182), escreveu ele. A meu ver, o ateísmo pertence ao âmbito filosófico, e não, como é comum se pensar, uma questão antirreligiosa. Por isso mesmo, não se trata de um ateísmo combatente, e sim de um ateísmo resultado de muita reflexão em torno à crença de que um ser é o responsável por tudo o que há, e que Deus é tudo, tudo sabe, e está em tudo o que existe, (p. 148) como pensaria o seu agressor. Que responde ser o Deus muçulmano diferente de Deus do judaísmo, de Deus cristão criador do homem a sua imagem e semelhança. Os muçulmanos não consideram assim Deus. Como Deus, então, se comunicou no livro sagrado do islamismo, indaga o escritor no diálogo imaginário com seu quase assassino.

Na segunda parte desse diálogo improvável, o escritor considera se os dois anos de doutrinação no Líbano produziram na cabeça do jovem dar-se por missão assassinar o autor "maldito", e ser merecedor do gozo eterno...

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A ausência de razão, o obscurantismo, o fanatismo, a doutrinação, conduziram o perpetrador, um jovem que poderia ter um futuro, e que hoje é prisioneiro no cárcere e prisioneiro na mente, na crença, na obstinação.

Religiões são questão de fé, de apaziguamento, de tranquilidade do espírito, de irmandade. É absurdo que uma crença leve à brutalidade, matar alguém por suas ideias, seus valores, é condenar os homens ao inferno na terra.

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PS.: quanto ao mérito literário de Rushdie, li apenas "Victory City", seu último romance. Não está entre os meus preferidos... Mas esta é outra questão.