sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Se Foucault estivesse vivo...

Trinta anos se passaram da morte de Foucault. Sem cair no esquecimento, muito pelo contrário, suas concepções revolucionárias sobre as ciências humanas, inserção social da medicina, denúncia da instrumentalização da psiquiatria, sexualidade vista pelo ângulo de práticas sociais e históricas (não como fato natural ou biológico), produção da verdade com uso social, político e jurídico (e não descoberta da verdade) - entre outras, permanecem vivas e atuais. E mais, são noções que se oferecem ao debate, não se fecham no dogmatismo, ainda que sofram interpretações um tanto escorregadias.

A velocidade das informações foi acompanhada de crescente disseminação nas redes sociais de suas ideias, seus livros são reeditados como filósofo algum foi até hoje em nosso país. Mas Foucault está longe de ser senhor de alguma verdade, ou consolador das esquerdas pós-marxistas, muito menos o profeta de uma nova ordem social.
 "Vigiar e Punir" com mais de 30 edições

Como entender, então, tantos estudos, dissertações,  teses e artigos em que ele é estudado ou pelo menos citado?

Inversão de expectativas é um traço forte. O outro, desconstrução de conceitos estabilizados, tomados como verdadeiros e indiscutíveis. Em lugar do culto às ciências, sem discutir o mérito de avanços que possam trazer, mostrou que a medicina, a psiquiatria, a psicanálise constituíram um tipo de saber útil às sociedades modernas. É que essas sociedades a partir de fins do século 18, funcionam muito melhor ao disporem de indivíduos saudáveis, trabalhadores capacitados, instituições para isolar e "curar" doenças, invenção de aparelhos eficazes para não só controlar indivíduos, mas também extrair deles comportamentos e atitudes que facilitam governar.

Desde a circulação urbana, portos, controle sanitário, inspeção de produtos, exigência de segurança cada vez mais fechada (ao mesmo tempo em que a ameaça à segurança se torna cada vez maior), até práticas aceitas sem contestação como benéficas e/ou saudáveis (vacinação, testes de saúde, monitoramento por câmeras): nelas transcorrem relações de um poder aquietado, invisível, sobre o qual não há uma consciência social ou política de que seja opressor ou destrutivo.
Claro, é que assim são criadas condições para indivíduos e grupos circularem, agirem, produzirem, reproduzirem. Fica fácil governar em um sentido mais profundo de governar, não a do partido político ou do sistema democrático ou ditatorial, e  sim o que Foucault chamou de "governabilidade". Quer dizer, meios não violentos que instam populações inteiras a se comportarem do modo esperado, obedecendo não só às necessárias regras de conduta (sem elas impossível o convívio social), mas às inúmeras formas de sujeição por ele denunciadas.

A ironia: quanto mais sofisticada e moderna for uma sociedade, maior o controle. E o inverso, vide surto de ebola na Libéria. Menos controle, mais pobreza, mais pobreza, menos controle. Dois mundos e a dificuldade de sair desses dois círculos ...

Enfim, somos produto de invenções para curar, instruir, extrair habilidades, usar os prazeres, investir na sexualidade como um modo de existência sobre a qual incidem discursos especializados, isolar e disciplinar anormalidades, normas de adequação do comportamento.

Pergunta-se, então, há alternativas?
Sem enxergar os procedimentos de normalização, exame do desejo (sujeito moderno "precisa" confessar sua intimidade, hoje ainda mais, escandalosamente) e como nossas práticas dependem  de algum tipo de diagnóstico, não há como resistir. Sucumbimos à saturação de poderes.

Se Foucault estivesse vivo talvez dissesse: "Sou mesmo tão importante? Sou mesmo compreendido? Consegui modificar algo no modo de pensar das pessoas?"

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