terça-feira, 11 de dezembro de 2012

O sentido do conceito de "crítica" em filosofia

Tornou-se lugar comum acrescentar o adjetivo "crítica" à filosofia. Mas o que isso significa?
O termo tem origem no grego kriticos do verbo krinein, julgar. Portanto, capacidade de avaliar. O uso mais comum do termo em filosofia, especialmente em manuais de divulgação e, por consequência, em sala de aula, decorre de se compreender que a exigência maior da filosofia é "mudar a realidade". E isso vem ligado à noção de que as aulas de filosofia seguem uma missão, há um papel social e político no ensino de filosofia.
Porém, o termo "crítica" indica capacidade de avaliação, de julgamento, está ligado antes à noção de uso criterioso de conceitos, que permitam olhar a realidade não pelo véu da ideologia, e sim pelo estudo, pela investigação que o modo reflexivo de pensar enseja.
Ao invés de ver nos alunos cabeças vazias que precisam ser preenchidas por certo "pensamento crítico", leia-se, "doutrinação político/ideológica", o professor de filosofia deve considerá-los como sendo capazes, como diz Kant, de pensar com sua própria cabeça, serem livres e autônomos; os alunos tanto no nível médio como no superior não uns são alienados que precisam ser acordados para a realidade econômica da diferença de classes e do terrível capitalismo.

É evidente que há profundas diferenças de classe, o capitalismo tem consequências como desemprego, crises, inflação. E isso precisa ser analisado, sim, com critérios, portanto, com crítica, no sentido mais profundo da filosofia. A perspectiva do olhar filosófico distancia as situações para formar um conjunto, e depois aproxima a visão de um problema, de uma questão e a pergunta que o filósofo faz é pelo porque, pela razão de ser, pelo sentido de todas as coisas. Que coisas? A existência humana sujeita a sentimentos, dores e prazeres, compensações, valores, projetos; a consciência de si, dos outros, e, principalmente a consciência da condição humana: a inelutável morte.
No atropelo das dificuldades cotidianas, essas questões são ignoradas. A crítica filosófica as levanta, as suscita por meio de indagação e reflexão. 
Desse modo filosofar é avaliar, medir, dimensionar, isto é, criticar. Crítica não é, portanto, demolição. É construção de um saber, de uma prática que ilumina a vida, dá condições de ver com um sentido renovador a situação humana, seja ela política, social, moral, religiosa, cultural.

O que fazer com relação à morte? O filósofo aceita a inevitabilidade do fim com serenidade.
O que fazer com relação ao sofrimento pessoal e mesmo o de grupos inteiros discriminados pela pobreza, pela opressão, pela injustiça social e econômica? Minorar esse sofrimento denunciando tais situações, expondo essas diferenças e mostrando que e como a vida em sociedade pode atingir ideais de justiça e solidariedade.

A filosofia também teoriza sobre questões mais abstratas, difíceis de compreender. Metafísica, ontologia, epistemologia, lógica são territórios ocupados pela razão quando pensa sobre suas próprias possibilidades. 
Há uma causa geral de tudo ser, de as coisas existirem? Esse tipo de indagação precisa de certos conceitos e de categorias, como essa, a de causalidade. O incrível ou o misterioso nisso é que esse tipo de decifração depende de nosso tipo de pensamento, do modo como nosso entendimento funciona.
A filosofia leva o pensamento a esses limites, a esses enigmas. Isso não é exclusividade da filosofia: a literatura e a poesia levam o pensamento às  metáforas que também instigam, a linguagem poética revela o mundo. A diferença existe: o filósofo raciocina com conceitos, com o rigor da razão; o poeta usa imagens com liberdade de criação.
***
Essas perguntas e dúvidas "contêm os mais profundos questionamentos possíveis com relação ao destino do homem. Elas dizem respeito ao critério (g.m.) que ele precisa empregar para formar suas crenças; os princípios por meio dos quais ele irá dirigir sua vida e os fins para os quais ele a dirigirá" ("contain the deepest possible questionings regarding the career of man. They concern the criteria he is to employ in forming his beliefs; the principles by which he is to direct his life and the ends to which he is to direct it"): John Dewey, Reconstruction in Philosophy.

4 comentários:

  1. Cordiais Saudações Profª Inês... Meu nome é Robson, fui seu aluno na PUC turma de 2007, a senhora foi nossa paraninfa.
    Muito bom o seu texto, entretanto existem alumas caracteristicas da Filosofia Crítica que é preciso salientar... não obstante ao que Kant afirma sobre a autonomia, e até mesmo sua contribuição acerca entendimento, acredito que não seja tão fácil desenvolver no aluno esse pensamento crítico e livre de qualquer ideologia. acredito que os eventos que foram gerados após a revolução industrial, a substancia do pensar tenha sido substituída por uma existencia totalmente fora de si... quando a senhora afirma que criticar é medir, dimensionar é construir um saber, a senhora está pressupondo um sujeito independente do seu contexto social? Podemos até omitir (na perspectiva de não influenciar o estudante ideológicamente) de que estamos sob a ditadura do consumismo e que existimos no deserto do real (Zizek!), mas as outras forças comunicativas, como a mídia, não cessa em doutrinar ideologicamente ao consumo, ou a grande industria da musica e da moda que são reflexos de uma condição que o indíviduo não tem participação na construção de tudo isso, são coisas que lhes foram impostas.
    Acredito que se a proposta de se ensinar Filosofia, no ensino médio por exemplo, é formar um cidadão crítico, acredito que seja necessário seguir a ordem dos acontecimentos... antes de pensar é preciso vestir, alimentar, ter com o que se alimemtar... e todas essas necessidades são privatizadas por industrias que produzem isso e que para termos o que comer, o que vestir, onde morar, precisamos trabalhar, e que o trabalho é o motor orgânico da sociedade, mas sob que condições se encontra o trabalho no nosso tempo, pleno séc XXI?... Hoje eu percebo que uma boa parcela dos nossos estudantes estão abandonando a escola por que ganhar dinheiro se tornou mais importante do que o trabalho ocioso que as ciencias estabelecem... ou seja, o importante para a grande massa dos nossos estudantes não é orar bem, ou conhecer as variadas formas de culturas ou dominar teorias, etc., e sim se vestir bem, ter um automóvel... isso se reflete também pela escolha dos nossos estudantes a cursos que permitirão algum retorno financeiro... de maneira que a busca por cursos de licenciatura e áreas afins são cada vez menos optadas, ou na troca de um ensino superior por um ensino técnico... Então parece que existe uma influência contrária a perspectiva de que temos que nos livrar de determinadas ideologias... ora, a todo momento estamos submetidos à ela. Realmente, não se trata de desconstruir o conhecimento ou doutrinar para determinadas teorias, mas sim, desconstruir falsas perspectivas de sociedade e de sujeito... redimensionar o ser humano ao seu espírito e ao seu contexto... simplesmente não desconsiderar sua existência material e sua influencia em camadas da existência, sua influencia sobre o próprio pensamento.

    Grande abraço, do seu ex aluno , Robson.

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    1. Olá Robson
      Sempre bom ouvir opinião de meus ex-alunos. Claro que vivemos em sociedade de consumo. A filosofia deve refletir inclusive sobre isso, os limites do consumo, a quem beneficia, os excessos, o chamado consumismo.
      Quando digo que é preciso retirar o véu da ideologia, minha intenção não é pretender uma neutralidade numa espécie de céu ideal, e sim que há um perigo em confundir a missão da filosofia com doutrinação.
      Abraço

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