quarta-feira, 11 de junho de 2025

A intolerância

"Fui instruído a matar pessoas até que todos se convertam ao Islã", palavras de um guerrilheiro talibã. Em 2021 a guerra no Afeganistão acabou, os americanos voltaram para casa, e recomeçou o sofrimento da população sob o regime do Talibã. 

No período anterior, a única prefeita em todo o país, Zarifa Ghafari, assumiu a luta em Maidan Wardak pela educação das meninas, proibida pelo regime; ela própria saía de casa às escondidas para completar seus estudos. No cargo, sempre cercada por homens, seu motorista a conduzia de Cabul até a cidade de Maidan, diariamente, enfrentando no caminho grupos armados de talibãs. Acusada de imoralidade, ameaçada constantemente, ela lutou pela liberdade de expressão no âmbito do Islã.


Zarifa Ghafari


Armados, os talibãs impõem a lei da Sharia pura, cortar a mão de ladrões, apedrejamento de mulheres até que não mais cometam fornicação. Deus diz para matar os infiéis sem hesitação, como foi feito em 1999 em um estádio de futebol, cena que ficou na memória de Zarifa. Vestida com burca azul, uma mulher é fuzilada em meio ao silêncio, apenas o ruído do tiro e do corpo que tomba.

Zarifa considera a educação uma libertação, precisou enfrentar até seu pai para ir à universidade. Seu trabalho foi reconhecido pela ONU, homenageada com o prêmio "Mulher de Coragem". O próprio pai acabou assassinado na frente de casa como vingança contra ela. Melhor morrer, diz ela, do que casar com um talibã. Uma bomba explodiu em escola feminina em Cabul, para onde Zarifa foi transferida. 

Após 2021, com retorno do Talibã ao poder, houve fuga em massa, aeroportos cheios, pessoas correndo atrás de aviões que eram escalados para sair do país. A própria Zarifa se refugiou na Alemanha, "agora não tenho nada", disse ela. Mulheres marcharam pelos seus direitos, mas o regime autoritário e implacável prevaleceu, a promessa das escolas para as meninas não se cumpriu, há fome, pobreza, vício, empresas abandonaram o país.

Zarifa prossegue sua luta, o Afeganistão é um país pobre, tiranizado, e, como ela diz, o povo afegão foi condenado a viver no inferno.

Com suas mãos e pés queimados e retorcidos, Zarifa aparece com luva em algumas cenas do documentário, em outras os dedos cheios de cicatrizes ficam evidentes. O que teria acontecido? Permanece o mistério.

Em nome de divindade se cometem atrocidades. Impedidos de olhar os outros, com o sectarismo entranhado em sua cultura, é como se houvesse dois reinos separados, um o dos homens, outro o das mulheres. Quem fez essa observação foi Ruth Pfau, mencionada neste blog, a respeito do Paquistão.

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Obs.: Disponível na Netflix o documentário "Em suas mãos" sobre Zarifa. Como reforço vale ver a história verídica da fuga de uma mulher mantida em cativeiro em aldeia do Paquistão em "O Diplomata" (2025).

quarta-feira, 4 de junho de 2025

Papa Leão XIV, um agostiniano.

 Robert Francis Prevost, agora Papa Leão XIV, proclamou-se um agostiniano. O que isso implica?

Papa Francisco dedicou-se à causa dos pobres e oprimidos, sua inspiração foi São Francisco, todos são irmãos, a caridade é fundamental. Na base de sua ação e pensamento não havia uma linha filosófica, ao contrário de Leão XIV que se declarou um agostiniano, quer dizer, seguidor das lições teológicas e filosóficas de Santo Agostinho (354-430). A inspiração da doutrina agostiniana é a luz interior.

 

Símbolos de escuta e acolhida, Leão XIV.

No diário "Confissões" Agostinho expos sua vida pregressa de prazeres e dissipações, perdoou-se desses pecados da juventude e converteu-se à doutrina cristã. Estudou Filosofia, inspirado por Cícero, filósofo estoico, prometeu a si mesmo buscar a sabedoria e conquistá-la. Note-se que ele se propôs a uma missão, não encontrou a fé e a sabedoria prontas.


Santo Agostinho, a luz interior

Foi professor de retórica até os 28 anos, teve um filho que morreu jovem, a amante seguiu seu caminho; Agostinho rompeu com seu passado, prosseguiu como professor em Roma, depois Milão. Sua conversão ao cristianismo se deveu ao exemplo de Paulo de Tarso (São Paulo) que encontrou a fé em uma súbita revelação. Para Santo Agostinho, razão e fé se combinam, e essa correspondência ilumina a vida, dá a ela sentido, numa busca interior, na análise de seu íntimo e nele encontrar a graça de Deus, a luz da alma.

Enquanto um tomista parte de provas da existência de Deus, usa portanto a razão que faz a ligação entre causa e efeito, o agostiniano experimenta, usufrui sem precisar recorrer a provas, apenas pela relação com seu espírito, com sua vontade nesse mundo criado por Deus a partir do nada. Nesse sentido Deus não é qualificado como sábio e todo poderoso, por exemplo, pois essas qualificações são nossas, humanas, e Deus é inefável, eterno.

Como entender que há o mal no mundo? Tudo o que existe, existe em estado de incompletude, inacabado. Os homens, dotados de livre arbítrio são inteiramente responsáveis pelos seus atos: praticar o bem ou não, é uma escolha. Daí a necessidade de cultivar e aperfeiçoar a boa vontade, cuja perda é o maior dos males. Ser justo, adequar-se à boa vontade, esse é o maior dos bens.

A inspiração agostiniana do novo papa, Leão XIV, sugere um retorno à fé interior, conduz à conciliação, às realizações pessoais, em suma, à boa vontade. A luz aponta o caminho, mas as escolhas são humanas, falham. 

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Dominados como estamos pela tecnologia, com amplo uso da inteligência artificial, esse voltar-se para dentro de si não deixa de ser inspirador.