domingo, 31 de maio de 2015

Razões para viver

Verbos denotam ação principalmente. Qual seria o verbo que diferentes pessoas usariam para definir o sentido que dão a sua vida?

Amar, alguém discordaria? Mas pense no caso de uma criança palestina, que viu sua casa, seu território ser tomado, cujo modelo são adultos que empunham armas, e cenas de violência são banais, a morte ameaça essas crianças. Qual seria o verbo delas? Odiar? Não, precisam sobreviver, defender-se, essas seriam as ações mais apropriadas.
Pense nas mulheres que lutam para usar o véu de sua crença, e também nas mulheres que lutam para dispensar o uso do véu e são impedidas, podem ser punidas com pedradas. E que dizer das mulheres que sofrem mutilação genital, das que são obrigadas a casar com quem acabaram de conhecer?
"Amar" não atenderia seus propósitos vitais. Elas precisam de reconhecimento e proteção, existir como pessoas, não como animais subservientes.

Que dizer do verbo "crer"? A crença de sunitas e xiitas exige fidelidade a sua seita. Não são todos muçulmanos? Até mesmo budistas com sua religião pacifista e cuja máxima é tolerar, aceitar, compreender, perseguem muçulmanos da etnia rohingya em Mianmar.
Há intolerância em seitas protestantes mesmo em países adiantados e com alto nível de educação e informação, como nos EUA, ao proibirem o ensino da teoria evolucionista de Darwin. 
Pode-se chamar a essas atitudes de religiosos de tolerância? Que fé é essa que mata e persegue?

Qual verbo usam responsáveis por empresas, altos funcionários de governos ao espoliarem bens públicos, e reservarem para si fortunas? Explorar, acumular, entesourar...
Como podem dormir tranquilos os que se apropriam de bens públicos? Roubar seria "razão para viver"?

Entretanto, há quem use verbos como "importar-se", "cuidar", "educar". Pais e mães, professores, médicos, cuidam, zelam. E também cuidam policiais, agentes de trânsito, motoristas, operadores de máquinas, cozinheiros, garis, agricultores e muitos outros. O policial , o motorista, o operador, o agente de saúde, o biólogo, o cientista -, precisam cuidar, prestar atenção, atender; se descuidarem são chamados a responder pelos seus atos. 
Ao passo que certos governantes, políticos e altos funcionários travestem seus atos ilícitos de legalidade, aceitam e exigem propinas. Descuram dos bens públicos, encobrem o enriquecimento e ainda ficam impunes.

De nada adiantam crenças e loas, sentimentos de fé e de amor, se não houver cuidado. Cuidar implica em ser responsável, procurar conhecer cada vez melhor seu ofício, aplicar-se, informar-se. Tolerar e aceitar o outro são imprescindíveis para a vida em sociedade. São suficientes e nobres razões para viver.

segunda-feira, 25 de maio de 2015

A perda da simplicidade

Os bens e produtos que compõem nossa vida são cada vez mais numerosos, exigem tempo e dinheiro, são considerados necessários, mesmo imprescindíveis.
Meios para expandir tudo o que é básico, desde vestuário, alimentação, moradia, se banalizam, ficam ao alcance de um toque nas telas, de uma volta em shoppings, de visualizações na mídia. O desejo se retroalimenta por esses meios. A simplicidade e a austeridade se perdem, aliás, o que seria vida simples e austera nas urbes e nos meios sociais hoje?
O que é de fato necessário e o que é supérfluo? A linha que os separa ficou diluída com a revolução industrial, com a expansão das comunicações, com a sofisticação do mercado de trabalho, com a especialização das funções. Ao que tudo indica, o supérfluo se tornou necessário. Quase impossível abrir mão de produtos de "última geração", o preço é ficar alijado e mesmo alienado pelo desconhecimento ou pela rejeição do mais atualizado artefato tecnológico.
Evidentemente que para produzir, transportar e comunicar é obrigatório investir em tecnologia e conhecimento, se não o risco é, como se diz "ser engolido pela concorrência".
Essa disputa nunca tem o vencedor final, além de deixar no caminho muitos perdedores.
Nesse quadro, como agir, como reagir?
Delineando para si projetos de vida em que a informação, o senso crítico, o discernimento, a renúncia à multiplicação desproporcional do desejo de consumo e a busca por certo despojamento façam parte do modo de ser.
Problema: esse tipo de reflexão, que modo de vida escolher e quais valores preferir -, sequer passa pela cabeça da maioria.
No lugar da simplicidade e do despojamento, a competição e o total envolvimento com as atrações e novidades.
Sem que houvesse quem compra supérfluos estes não seriam comercializados e a produção mudaria talvez para outro tipo de consumidor, e poderia atender as reais necessidades de enorme parte da humanidade, que sofre com fome e guerras fratricidas.

Um bom exercício de desprendimento seria contemplar o céu que se abre por detrás de nuvens, em um azul que leva o espírito a ir mais além, para diante, para o mistério. Saber-se mortal e frágil pode levar as pessoas a olhar com certa distância a acumulação de bens, as mesquinharias, o egoísmo, a pressa, a competição e tantas barganhas do dia a dia.

Sêneca (século I) escreveu em Da tranquilidade da alma: 

Minha alma, que não está habituada a choques, padece com a menor humilhação; ao sofrer alguma injúria (como é comum encontrar em toda a existência humana), ou alguma contrariedade, bagatelas, que me têm tomado mais tempo do que valem a pena, volto-me à ociosidade e, como os animais, por mais cansados que estejam, acelero o passo ao retornar ao lar. E decido então encerrar-me em casa: que ninguém me roube um dia, pois ele jamais me indenizaria de tal perda; que minha alma não se incline senão para si mesma ... que não se ocupe de nada que a distraia, que a submeta ao julgamento alheio. Apreciemos uma tranquilidade que seja estranha a todas as preocupações públicas ou particulares. ... É possível à alma caminhar numa conduta sempre igual e firme, sorrindo para si mesma, comprazendo-se com essa sensação, sem se afastar jamais de sua calma, sem se exaltar, nem se deprimir. Isso será tranquilidade. Equilíbrio, que os gregos chamam de "euthymia".