sábado, 26 de abril de 2014

O valor da ironia

Para o senso comum, ironizar equivale a caçoar, a gozar de algo ou de alguém, a conotação do termo é negativa.
Para a filosofia, a ironia tem outro alcance e outra conotação. Toda situação pode ser reelaborada pelo ângulo da ironia, de modo a assumir certa distância que um olhar perquiridor e atento, que permite a reflexão e o questionamento, abalam o que já sabia, o que se tinha como certo e seguro.O ironista pergunta, será assim mesmo? Você não conseguiria ver de um modo novo, diferente? Aquilo que você considera assentado, por acaso não poderia ser abalado, modificado, reinventado?
E a resposta do filósofo irônico será sempre SIM! 


A ironia de Sócrates parte da introspecção, da descoberta de seu eu, atingir pelo olho interior o que há de divino dentro de si, a sua sabedoria. Aquele que crê saber, nada sabe, pois acha que já conhece tudo. Aquele que diz nada saber é realmente sábio, pois este não crê saber o que ainda ignora. Ou seja, não se trata de um jogo de palavras e sim de um ponto de partida: para chegar à sabedoria, é preciso reconhecer a ignorância, livrar o espírito dos erros e prosseguir no caminho da verdade. A ironia leva ao

Sócrates


desmonte das ideias prontas, a ironia tira o chão dos que se creem superiores. Sócrates conduz a argumentação fazendo com que a pessoa se confronte consigo e com tudo o que considera como correto e verdadeiro sem exame prévio, a ponto de essa pessoa se irritar; o próximo efeito é a pessoa se libertar das opiniões e abrir-se para novos ensinamentos.Como Sócrates tinha muitas dúvidas, ele instigava dúvidas nos outros, e, pelo diálogo ia modificando as noções antes aceitas; desse modo o próprio filósofo ia construindo o conhecimento, ele como que pavimentava o caminho para a vida reta e virtuosa, que é a finalidade da sabedoria.


Voltaire ironizou por meio do recurso ao absurdo, ao non sense e à contradição: dizer o contrário do que se quer comunicar, mesmo correndo o risco de não ser compreendido. Aliás, quem não compreende o significado de um dito irônico, falta-lhe informação, leitura, cultura. E talvez com pessoas muito ingênuas ou pouco informadas, o esforço de ironizar não compense.

E ironizar compensa? Não será uma ironia que a própria ironia desloque a si mesma?

O riso silencioso do filósofo, a que se referia Foucault, é irônico. Apontá-lo como estruturalista ou como filósofo da vanguarda, ou como um guru que tem resposta para todas as questões, a isso tudo a resposta vem num tom irônico. Se me consideram positivista, disse ele, sou um "positivista feliz".

Há todo um jogo de significações com ida e volta a contextos para que a ironia seja interpretada corretamente. Ironia: mas como assim, "corretamente"? E o que dizer, ironicamente, do que se considera como correto? A quem ou a que atribuir correção, sem tropeçar na ironia?
E a ironia das ironias? Viver para morrer...


sábado, 12 de abril de 2014

As diretrizes do Plano Nacional de Educação e a questão da igualdade

Em recente debate acerca das diretrizes do PNE sobre a promoção da igualdade via educação, Toni Reis (Gazeta do Povo) defende o plano original, o de que esse objetivo seria alcançado pela "promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual".
Problema: como ser igual se é preciso respeitar as diferenças entre gêneros, se a própria orientação sexual deve ser vista como permitindo que sejam seguidas sem discriminação, se ser mulher é algo de que nos devemos orgulhar, como, repito, esse justo realce nas diferenças pode ser compatibilizado com igualdade?
A igualdade jurídica e política pertence à esfera legal, constitucional. Já está assegurada.
Mas não é possível haver igualdade nas expressões de si, de seus gostos, desejos, orientações. Nesta esfera, o que deve e precisa ser respeitado e compreendido, são os estilos de vida diversificados.

Na outra ponta, e contrário a esses propósitos na educação, Paulo Vasconcelos Jacobina acusa Foucault, Freud e Lacan, de serem os inspiradores dessa política que vê o lado da opressão e não o da educação para a ciência, para a cidadania, e que cultua aqueles pensadores os quais, segundo ele, se prestam apenas para denunciar toda sorte de opressão e investem em "educação de 'vanguarda' sexual".
Errado também.
Se pedagogos fazem uso inadequado e mesmo errôneo de noções e conceitos de Foucault, Freud e Lacan, é porque desconhecem suas ideias. 


Tomemos o caso de Foucault. A desculpa para o desconhecimento e mau uso de seus escritos, aparece invariavelmente sob o manto acusatório de ser "pensador da moda".
Que moda duradoura é essa!
Em nenhuma obra, entrevista, curso Foucault defende a igualdade, nem que é dever educacional promover a igualdade de orientação sexual.
Entre outros objetivos, Foucault é um analista, um historiador do presente, isto é, de como práticas diversas instituídas e/ou inventadas em épocas históricas determinadas, constituíram esse homem, esse sujeito, esse indivíduo moderno. Ele inventariou as mudanças históricas que resultaram, por exemplo, no indivíduo político, produtor, que precisa ser vigiado e punido para que governos usufruam do trabalho, produção, produtividade como se exige tanto hoje em dia; desse modo, é possível governar com menos aparatos, policiais inclusive. População governável, depois do século 18, saudável, mantida em mínimas condições vitais de saúde; ditaduras de direita como de esquerda precisam dela, tanto quanto democracias.
Foucault investigou como resultamos em indivíduos encaixáveis, submissos, mas não tem um discurso político pronto para que nos libertemos da opressão, seja ela qual for.
Até mesmo a sexualidade moderna resulta de práticas, discursos, aparatos médicos, psicológicos, psiquiátricos que moldaram a relação com o sexo e deram novo sentido às práticas sexuais. Não mais o foco nos prazeres, na fruição e sim na relação de si com o desejo, com o desejo posto sob exame, confessar sua intimidade, colocá-la voluntariamente sob o escrutínio de algum ouvido sábio...
E esse indivíduo moderno está aí, policiado, tutelado, examinado, investigado por questionários e enquetes, que cada vez mais confessa seus desejos sob o crivo da ciência especializada.
Voluntariamente se orna com aparelhos que medem tudo o que ele faz. Se corre, quer saber das batidas do coração, não para prevenir alguma doença cardíaca (que também está sob vigilância) e sim para aumentar sua performance. Sofisticados rastreadores de atividade esportiva acoplados ao corpo operam uma "verdade" utilizável.
Como diz Foucault, esse domínio cada vez mais fechado sobre o corpo, sobre a sexualidade, permite ao Estado funcionar otimamente, com menos rebeliões.

Então Foucault não tem nenhuma mensagem aos jovens educandos?
Abram os olhos!
PS: desconheço lições de rebeldia contra a "opressão" por parte de Freud e Lacan...