segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Por que os brasileiros reagem tão pouco à corrupção?

Muito se comenta sobre o contraste entre movimentos de afirmação, como a "Parada Gay", que levam multidões às ruas no Brasil, e os protestos contra a corrupção, que arregimentam pouca gente.
Há uma diferença conceitual entre os dois tipos de protesto, sobre a qual pouco ou nada se diz. No primeiro há diversão, alegria.
No segundo desilusão e tristeza.


Simpatizantes dos movimentos pelo direito de expor publicamente sua opção sexual saem em grande número também (não só pela diversão), pela liberação de algo que foi proibido e excluído. O efeito é semelhante ao do carnaval, liberar o que é censurado ou proibido.
Motivos para protestar contra a corrupção não faltam. Mas para mobilizar é preciso uma agenda mais afirmativa e premente. E as razões desse aparente imobilismo talvez não sejam a alienação política, o conformismo e nem o entorpecimento ético.
Passeatas contra a ditadura nas décadas de 60/70 eram duramente reprimidas, mas o forte motivo de combater a ditadura levava multidões às ruas ("Diretas Já").
Mal governos democráticos se instalaram, e cedo a esperança de que fossem honestos e representassem o interesse da nação foi solapada. E justamente pelo partido que se dizia ético, o PT...
Assim, há uma dose compreensível de ceticismo. Parlamentares, com as honrosas exceções de sempre, buscam favorecer interesses ilegítimos, o ex-presidente compactuou com a corrupção, até mesmo a tornou aceita, oficializada pela não punição. Lula não disfarça, considera que governar implica em usar de qualquer meio, mesmo os ilícitos, para atingir o fim: décadas no poder, usufruindo pessoalmente desse poder. Não entende que esse poder é público!
As pessoas se desanimam diante desse quadro político de desfaçatez escancarada! E pensam: adianta sair às ruas? Protestar contra a corrupção dá resultado ou você se sente um palhaço, que, além de tudo é obrigado a votar?
Dos ovos da serpente nascem o apego pelo poder que favorece benesses pessoais e alimenta os cofres partidários, o da vez, é o PCdoB.
Esses políticos pensam, refletem, estão conscientes minimamente de que foram eleitos para um cargo público?
Claro que não!
Pessoas que pensam, refletem, enfim, filosofam, não cometem injustiça. A prática filosófica, expor razões no espaço público, ao público, isto é, aos eleitores,  é incompatível com a injustiça.
Por isso se diz que é impossível filosofar sem ser justo.
Portanto, os políticos desonestos e corruptos são, além de tudo, estúpidos no pior sentido da palavra: sem educação, sem ética, sem postura pública, não merecem o cargo que ocupam!
Ora, justamente os mandatários deveriam ser os mais dignos, pessoas excelentes em caráter e em disposição para governar a todos, com justiça, como escreveu Platão:
Nossa política, a política verdadeiramente conforme à natureza, jamais consentiria em constituir uma cidade formada de bons e maus. Ao contrário, começaria por [...] confiá-los a educadores competentes e habilitados para esse serviço. [...] É somente entre caracteres em que a nobreza é inata e mantida pela educação que as leis poderão criar este laço.
Platão se referia ao político e ao sábio legislador, eles são capazes de criar a tessitura social, com sua alma penetrada de verdade, aberta às ideias de justiça.

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

O empreendedor e o caminhante: para celebrar o dia das crianças

Até para crianças as escolas, em geral as particulares, treinam para que elas sejam futuras empreendedoras. Quer dizer, aptas para vencer no mundo dos negócios, há que saber organizar, planejar, investir em uma carreira, como se diz, "sólida", leia-se "lucrativa".
Certamente escolas formam em dois sentidos, o da pessoa e seus valores, seus projetos, sua realização; e no sentido profissional, a necessidade de uma habilidade, seguir uma vocação, aliar seu sustento com o prazer de trabalhar, de exercer uma atividade compensadora.
Houve, portanto, um desvio da função educacional, para um objetivo estratégico. No mundo dos negócios é preciso usar técnicas vencedoras de empreendedorismo. E isso foi projetado para o universo infantil: dá-se excessivo valor à capacidade da criança de iniciativa, de jogar e vencer, desenvolver uma capacidade no sentido de expertise, uma logística, um cálculo.
Mas, se não houver lugar para a reflexão e para questões como gosto pessoal, fruição da vida, a pergunta essencial sobre o sentido do que se faz, e mesmo sobre a relevância e o valor das escolhas éticas e profissionais, não há por acaso o risco de transformar as crianças em adultos que agem enquanto executivos, gerentes, negociadores? 

***
Rousseau (1712-1778) foi péssimo marido e pai de família, pelo menos pelo ângulo da atualidade. A mãe morreu no parto. Na infância foi um leitor voraz, e quando adulto teve uma vida amorosa tumultuada. Escreveu sobre arte, política, educação infantil, romances; compôs peças musicais. Instável no trabalho e com suas finanças, um aventureiro, um romântico e, no fim da vida, sofreu com perturbações, mania de perseguição. Em sua autobiografia com mais de mil páginas, Confissões, revela os motivos mais profundos que o impulsionaram.
No fim da vida, mais calmo, escreve sobre a natureza, seus devaneios, seus passeios, despreocupado, reconciliado, talvez feliz. Em Devaneios de um Caminhante Solitário  Rousseau mostra que a vida pode ser simples, poética, que é agradável e prazeroso caminhar, contemplar, deitar-se na relva, olhar o céu e perder-se no azul imenso.
As crianças precisam disso: que lhes seja ensinado contemplar, ter paciência, caminhar, passear. E também ler, aprender e saber usufruir disso. Atividades que não exigem nada em troca, sem obrigação alguma.

***
Escreve Rousseau em Promenades:
Tout est dans un flux continuel sur la terre : rien n'y garde une forme constante et arrêtée, et nos affections qui s'attachent aux choses extérieures passent et changent nécessairement comme elles. Toujours en avant ou en arrière de nous, elles rappellent le passé qui n'est plus ou préviennent l'avenir qui souvent ne doit point être : il n'y a rien là de solide à quoi le coeur se puisse attacher. Aussi n'a-t-on guère ici-bas que du plaisir qui passe ; pour le bonheur qui dure je doute qu'il y soit connu. A peine est-il dans nos plus vives jouissances un instant où le coeur puisse véritablement nous dire : Je voudrais que cet instant durât toujours ; et comment peut-on appeler bonheur un état fugitif qui nous laisse encore le coeur inquiet et vide, qui nous fait regretter quelque chose avant, ou désirer encore quelque chose après ?
Arrisco traduzir essas reflexões do caminhante:
"Tudo está em fluxo contínuo sobre a terra: nada retém uma forma constante e parada, e nossas afecções que se ligam às coisas exteriores passam e mudam necessariamente com elas. Sempre antes ou atrás de nós, elas nos lembram o passado que não é mais ou preveem o futuro que no mais das vezes não deverá ser: nada há nisso de sólido com que o coração possa criar laço. Do mesmo modo temos aqui embaixo tão somente o prazer que passa; quanto à felicidade que dura, duvido que ela seja conhecida. Pelo menos haveria em nossos mais vívidos prazeres um instante em que o coração pudesse verdadeiramente nos dizer: Eu gostaria que este instante durasse sempre; e como se poderia chamar felicidade um estado fugidio que nos deixa ainda o coração inquieto e vazio, que nos faz lamentar um acontecimento passado ou desejar ainda algo depois?" (Rousseau, 5e. Promenade).

terça-feira, 4 de outubro de 2011

A noção de causalidade

Há povos e culturas nos quais está ausente a noção de causalidade, quer dizer, para esses povos não há como conceber que os acontecimentos fazem parte de uma história que muda e cujas mudanças são o estofo de nossas atividades. Buscar a causalidade implica reduzir tudo a uma suposta causa única para todo o universo, para todos os seres, o que leva igualmente a supor uma causa final para a qual todos os seres tendem, à qual todos se subordinam. (Exemplo na história da filosofia: Aristóteles e os conceitos de motor primeiro e causa final).
Povos indígenas que habitaram (e ainda habitam?) o Brasil, aborígenes australianos, tribos africanas, todos eles viviam um eterno presente, caçar, eventualmente plantar; mudavam suas choças em busca de água e alimento, cultuavam a natureza, endeusavam suas forças; esses povos não evoluíram, não transformaram seu modo de ser e nem de pensar. Repetem hábitos e usos de geração a geração.
O intrigante é que outros povos e culturas tiveram uma história, e nela a noção de causalidade era fundamental. Deuses egípcios, sumérios, gregos eram personagens de episódios longos nos quais eram narrados seus feitos heroicos, eles comandavam o destino humano. Essas culturas buscaram uma causa geral para explicar a geração do mundo, que aliviasse o sofrimento, que desse um sentido à existência, às emoções, às guerrras, às conquistas. (Exemplo: Zeus; narrativas: Ilíada, Odisseia)
A narração leva à necessidade de uma escrita que preserva a história e que funda, ao mesmo tempo, a noção de história e, com ela, a de que há uma causa primeira e um destino final.

Zeus no comando do destino para os gregos

Quando os aborígenes foram contactados pelos conquistadores da Austrália, o que eles viram foram povos coletores, ligados à terra, aos animais, sem escrita, sem história. Foram colonizados, era preciso convertê-los à cultura e crenças dos europeus, à força; assim foram quase completamente dizimados.

Restam 1% dos aborígenes australianos

Apenas em anos recentes e muito devido ao abalo no modo de pensar que tudo tem uma origem e um fim último, levou a poder dispensar a causalidade, o que permitiu compreender que as culturas sem história são parte da própria história da humanidade.
Vive-se hoje, na chamada modernidade, sob um novo padrão de interpretação da história: não é porque seres evoluem que se precisa pôr todos eles sob uma única causa. Quer dizer, estamos como que soltos no ar, desobrigados, um pouco ao modo dos povos primitivos, de buscar uma explicação sobre a origem primeira. Surgem novos conceitos: inconsciente, desconhecido, finitude; a análise se volta para os usos de signos, para a linguagem como detentora da doação de significado, para a criação humana de valores (leia-se: Hegel, Nietzsche, Freud, Wittgenstein, Foucault). 

O divã de Freud: somos sujeitados ao que não conhecemos, o inconsciente
Sem a obrigação de impor crenças e sem a autoridade absoluta de reis, não só podemos compreender nossa história dentro de uma perspectiva mais ampla, como também modificá-la, quem sabe um dia para melhor...