quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Você conhece algum filósofo (a) brasileiro (a) digno (a) do nome?

As publicações em filosofia cresceram bastante nos últimos 30 anos, aproximadamente. Mas creio que nada de original, relevante, interessante, produtivo ou que valha uma reflexão foi escrito. Nem livros, nem artigos e nem cursos transmitiram uma única ideia ou um conceito inovador, um método ou uma nova maneira de ver nas mais diversas áreas da filosofia. Talvez alguma contribuição exista na lógica, porém esse é cada vez mais um domínio da ciência formal e não da filosofia.
Escrevem-se livros pesados no sentido físico e pesados no sentido metafórico, tão pesados que o leitor se sente desestimulado...
Razões para tal?
Obrigações acadêmicas, luta para publicar, muitas vezes sob pressão, seguindo critérios burocráticos e arbitrários.
É bem verdade que nem todos os países e culturas produzem filosofia original. Filósofos relevantes estão em geral na Europa e nos Estados Unidos, com raras exceções.Os livros didáticos apontam Farias Brito, mas sua importância é quase nula. Não há curso algum, nem professores ou alunos que sabem de sua existência.
O mesmo não se pode dizer de outras áreas como direito, sociologia, história, literatura, nelas há brasileiros que se destacaram.
Houve época em que predominaram os estudos de filosofia cristã; desde a década de 60 e até os dias atuais, com cada vez menos intensidade, houve uma avassaladora invasão de marxismo dos mais variados matizes. Isso produziu mais doutrinação do que reflexão.
Atualmente há bastante liberdade de escolha, tanto de filósofos como de escolas de pensamento, o que é promissor.
Ainda assim, dificilmente há filósofos brasileiros de renome internacional ou cujas ideias tenham mudado algo na cabeça das pessoas. Repete-se, repete-se e nada se cria.
Aliás, doutores em filosofia se concentram em um único autor, em geral aquele escolhido para sua dissertação de mestrado, que depois é estudado no doutorado, até aí tudo bem. O problema é suas pesquisas afunilarem certo tema ou certo aspecto da obra de um filósofo ad nauseam, e eles se tornam super especialistas, ficam cegos para a contextualização do pensamento do autor de sua eleição, e pior, estão certos de que o "seu" filósofo basta, que aquela visão de mundo é a única verdadeira, que fora daquela doutrina falta o ar!
E o modo como os cursos universitários de pós-graduação são avaliados contribui para esses afunilamentos, para as análises cheias de pretensão, com citações a perder de vista, uma bibliografia que exige consulta no original. Quanto mais citação no original (em geral alemão) maior é o sinal de maturidade intelectual.
Interessante observar que nos EUA basta saber inglês...
E, contudo, não faltam os pretensos filósofos e filósofas que se apoiam na autoridade da fama adquirida na academia. Fulano ou fulana é um estudioso em tal ou tal filósofo, escreveu um catatau de 600 páginas, oram vejam só, que proeza. Pergunta crucial: alguém leu, alguém sorveu nessa fonte uma ideia interessante sequer? Algo original para pensar as coisas, nossa situação? Nada! Uma impressionante pobreza intelectual!
Mas esse professor (a) se torna um oráculo, é preciso consultá-lo (a) e tentar pelo menos que ele ou ela oriente o trabalho de alunos que, com isso, ganharão pontos em seu currículo.
Ora, a prática da filosofia requer liberdade de criação, o argumento de autoridade mata o pensamento.
É preciso cultivar outro tipo de relação com a filosofia e com a história da filosofia: estudo sério, capacidade de inovar, criar e, principalmente, de amar a sabedoria.

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Liberdade de expressão, protesto e censura


O poder de congregar e de influenciar das redes sociais ficou bastante evidenciado em episódios recentes. Foi o caso da "primavera árabe", em que o clamor pela democracia, no Egito, levou multidões à praça Tahir. Com coragem e persistência, conseguiram derrubar um ditador e expor suas crueldades e arbitrariedades. A convocação via internet e telefonia móvel foi o pontapé inicial para deslanchar o movimento.
Mensagens pelo facebook e pelo blackberry levaram jovens a depredar lojas, incendiar e assaltar o comércio em Londres e outras cidades inglesas. Bagunçar, enfrentar a polícia, levar para casa o que pudessem, sem temer represália, tudo isso começou como protesto pela morte de um jovem por policiais e acabou em bandos incitados a depredar.
Dois usos do mesmo veículo de comunicação. No segundo caso a polícia londrina aventou a hipótese de bloquear ou pelo menos cercear o uso de redes sociais quando incitam à violência. Não há como, a menos que se monte um esquema de censura como na China.
As mensagens eletrônicas são rápidas, atingem um público vasto e, como se vê, produzem mobilização. Quando bandos e multidões depredam, incendeiam e se escondem em capuzes, isso não se deve à pobreza, exclusão, revolta para com a sociedade ou protesto pela injustiça social e econômica. É pura e simples violência descontrolada, rebanho enfurecido, tumulto.
No caso dos protestos na praça Tahir havia um objetivo político defensável e justo, que levou pessoas a certo tipo de consenso, as palavras de ordem representaram reivindicações, todas elas públicas.
Protestos desse tipo se dão no que Habermas chama de "esfera pública". Nela pessoas responsáveis, com informação e com sinceridade de propósitos, discutem, exercem o poder de comunicação. E esse poder é o de atos de fala que produzem troca de informação, com intenção de esclarecer regras e normas, propor mudanças, alçar a um patamar em que razões pró e contra são livremente discutidas.
Ameaçar, incitar, proibir são atos estratégicos que barram a possibilidade de responder com um sim ou um não, de entrar em acordo ou de discordar.
Nos regimes democráticos há liberdade de expressão.
A expressão de ideias, conceitos e mensagens é garantida pela liberdade de credo e de opinião por constituições em democracias modernas. Tampouco a liberdade de expressão artística poderia, por princípio, ser censurada.
Mas ela é regulada em nome dos indefesos (crianças, por exemplo). Há imagens, filmes, propaganda cuja veiculação é regrada, regras essas que são discutidas e depois são aceitas e praticadas. Isso não viola a liberdade de expressão e nem caracteriza censura.
No caso do cinema, filmes polêmicos, como o recente  "Serbian Film" e muitos outros que escandalizaram no passado como Bertolucci com "Último Tango em Paris" ou Godard com "Je vous salue Marie", acabam por levantar a questão da legitimidade ou da utilidade da censura.
Mas a questão não é essa e nem se resolve pela censura. A preocupação deveria ser antes a de educar, instruir, discutir valores, aprimorar os juízos estéticos. Censurar quando se pode ver de tudo pela internet?
A capacidade de usar a comunicação para veicular livremente ideias e conceitos deveria ser suficiente para condenar a incitação, pelos mesmos meios de comunicação, à violência. Talvez evitassem também o péssimo gosto.

terça-feira, 9 de agosto de 2011

Reinvenções de Foucault

Michel Foucault (1926-1984) deveria ter seguido a profissão de médico, era o desejo de seu pai, cirurgião. Seu irmão seguiu o apelo paterno, ao passo que Paul-Michel estudou filosofia e psicologia. Ganhamos nós com seus escritos contundentes, como que flechadas no coração do tempo presente, nas palavras de Habermas.


Ele reinventou noções que estavam desgastadas e bloqueavam uma visão mais acurada e crítica de nossa época. A história do tempo presente moveu seus interesses intelectuais e pessoais. Um a um conceitos foram derrubados e novamente constituídos à luz de novos intrumentos "metodológicos", a arqueologia do saber, a genealogia do poder e a análise das práticas de si. Renovou não só quanto à abordagem, também nos temas: loucura, medicina, práticas discursivas, o poder microfísico, a prisão, a sexualidade, a governamentalidade. Com enorme erudição, facilidade de assimilação, um arco de pensamento que percorre desde os clássicos gregos, latinos, escritos medievais e do renascimento, passa pelas as fontes documentais esquecidas, formas arquitetônicas, os mais importantes filósofos, cientistas notórios, mas também práticas menores e obscuras de médicos e psiquiatras que forjaram o moderno sujeito medicalizado e psiquiatrizado; e ainda, o nascimento de instituições como a prisão e seu papel  na "sociedade  disciplinar", as formas de governar, desde os gregos até a do neoliberalismo do século 20.


A reinvenção da história: considerar os acontecimentos como feixes de relações e não como ascenção dialética em direção a uma realização mais completa e final ao estilo de Hegel. Exemplo: a história dos saberes no ocidente é tecida em formações discursivas; nelas nascem conceitos como os de circulação das riquezas, vida, evolução, norma, sistema. As mutações na concepção de sujeito, o sujeito pensante (Descartes) que representa o mundo pela sua consciência, o sujeito transcendental de Kant que "formata" a realidade, o de Heidegger que é finito e morrerá - são mutações que mostram como o saber ocidental elege certos temas e constitui verdades. Não há a verdade, a filosofia faz e refaz perspectivas. A relação entre o que se diz, as palavras, e o que é dito, as coisas, produz mudanças no modo como se concebe o ser humano, como figura de saber.


A reinvenção do papel das instituições sociais: família, governo, Estado, direito, leis penais não formam um bloco sólido e permanente. Há profundas modificaçoes das instituições sociais que não se devem exclusivamente a estadistas, conquistas, guerras, grandes invenções, mas a necessidades estratégicas e ao surgimento de tecnologias, que servem para o controle das populações, e também para a circulação de bens e indivíduos. Podem assegurar, ainda, a saúde dos governados, o que inclui desde a separação e a exclusão de doenças contagiosas, até a vacinação e o controle de fronteiras. Outros exemplos: a invenção do fusil exigiu novo modo de formação dos exércitos; acomodar o comportamento humano para operar com máquinas, aprender em escolas, curar-se em hospitais, exigiu do corpo treino, saúde, disciplina; as intervenções do governo a partir de meados do século 18 na família visaram produzir uma população saudável, ou seja, mais produtiva e menos onerosa para o Estado. E isso até nossos dias.


A reinvenção da concepção de ser humano: houve profundas mudanças no modo como nos conduzimos criando e modificando comportamentos e concepções, as chamadas "práticas de si". Exemplo: estilos de vida antigos, como o dos gregos, eram pautados pela moderação, usufruindo de conselhos para um domínio ativo de seus desejos e prazeres, uma espécie de economia da vida que leva a satisfações e serve inclusive à educação de cidadãos e dos governantes.  Em contraste, as práticas de si dos cristãos privilegiavam o ser governado por um tipo de poder pastoral, o que exigia submissão e, mais tarde, a confissão dos pecados. Já o homem moderno, é aquele que nasce de ciências "humanas", sempre que elas visam conhecer, dominar, interpretar, moldar, examinar o comportamento e a subjetividade, entregues ao saber de Outro. Este tem o poder de apaziguar, reconduzir os desejos, a sexualidade inclusive, para algo paradoxal: curar expondo que não há cura para o desejo.



Pinel libertou os insanos das correntes e os prendeu à objetividade do saber com pretensão à cura pela estrita disciplina asilar
Ainda assim, há espaço para o exercício de atos de liberdade: recusar ser moldado, o que inclui estilos de vida alternativos, mais prazerosos e menos sujeitados à vontade de saber e ao biopoder (ver postagem anterior). Um exemplo: recusar a instituição do casamento no caso dos gays, pois casar implica laços jurídicos, uma dependência do dispositivo de aliança.


Cuidar de si, reinventar-se é melhor do que prender-se à ditadura do "você deve ser e agir assim" e do que a obrigação de ser "normal".