segunda-feira, 29 de março de 2010

Conceito de justiça

A cada crime, a cada ato de violência, ouve-se "Queremos justiça!". Trata-se da justiça obtida pelo direito, que é muitas vezes precária, lenta, cheia de percalços. Condenar o culpado é tudo o que se requer para que a justiça se estabeleça. Isso basta?
Justiça pode ser entendida como um valor, aliás, para Platão, ela é a virtude mais preciosa para a realização política na polis. A cidade ideal é aquela em que as pessoas têm um papel, uma função, cada um ocupa seu lugar no todo segundo sua capacidade. Artesãos, guerreiros, governantes têm suas funções específicas e realizam um tipo de valor: os primeiros realizam a virtude da temperança, da moderação, sua alma é sensitiva; os guerreiros defendem a cidade, sua virtude é a da coragem; os governantes devem ser sábios, sua virtude é a da sabedoria. Justiça é uma decorrência dessa distribuição.
O conceito de justiça que mais usamos na modernidade não é o distributivo e sim o equitativo. Ela é para todos, e todos ganham o mesmo quinhão.
Evidentemente isso não funciona, há diversidade enorme de gostos, de educação, de projetos pessoais. Governo algum consegue distribuir tudo a todos da mesma forma. E se por acaso o fizesse, teria que ser impositivo, totalitário, ter mão de ferro para que uns não quisessem também o que caberia ao outro.
Um conceito mais interessante e viável é o de um filósofo norte-americano, Richard Rorty (1931-2007), de justiça como lealdade ou solidariedade alargada. Para ele não há uma moral universal, não há regras morais que devam ser seguidas por todas as culturas. Ele sugere que em algum lugar, de alguma forma, entre as crenças e desejos compartilhados deveria haver recursos que permitissem a convivência, a convivência sem violência.
Como aplicar isso a palestinos e israelenses, por exemplo? A aproximação deveria permitir que cada um desempenhasse seu papel, seu destino político sem que nenhuma das partes pretendesse impor-se ou arvorar-se em ter razão, ser superior ou alegar direito inconteste.
Alargar a lealdade que se tem com seu amigo, seu familiar, ao outro, ao outro lado da fronteira, ao diferente de nós. Isso seria praticar justiça.

sábado, 20 de março de 2010

Sobre acaso, destino, sorte e azar

É frequente ouvirmos "estava escrito", "era o destino". Ou "hoje é meu dia de sorte" e também o inverso "hoje tive azar".
Como entender o tempo? O futuro? Se algo está escrito nas estrelas, então pode ser que tudo esteja escrito e pré-determinado.
Mas não é bem assim, temos liberdade para agir, para decidir, podemos planejar. Quando o planejado não dá certo costumamos atribuir a "culpa" ao misterioso, ao desconhecido, ao azar, ao acaso. Quando o planejado dá certo, consideramos que nós somos os responsáveis!
Não é estranho pensar dessa maneira?
Há diversas séries de acontecimentos, e elas se entrelaçam e deságuam no acontecimento x ou y. Se isso nos favorece, achamos que foi sorte. Se não favorece chamamos de azar.
Acontecimentos que se entrelaçam por causas diversas, em momentos diversos e que culminam em certo momento, podem ser o que chamamos de acidentes, uns felizes outros não...
Se houvesse destino, algo marcado para acontecer, não poderíamos mudar nossos percursos, e mudamos, ainda bem. O que não podemos mudar, aquilo em que não podemos interferir são as séries de acontecimentos aleatórios, ocasionais, fortuitos. Um terremoto, um galho que cai, a existência do universo, a evolução da vida na Terra. Podemos nos defender com prédios mais seguros, ficando abrigados numa tempestade, fazendo modificações genéticas.
Mas isso não elimina a incerteza, mesmo com todos os dispositivos de prevenção e de segurança, o futuro nos inquieta e amedronta. Vêm daí os mitos, os deuses, as promessas, as tentativas do dominar o acaso. Esses recursos podem até nos consolar, nos distrair por um momento, criar a ilusão de que somos eternos e incólumes.
Em vão.
Enfim, há três tipos de fenômenos: os que estão fora de nosso alcance, insondáveis; os fenômenos causados direta ou indiretamente pela nossa ação; e aqueles em que podemos influir, um enorme espaço de criação e liberdade, que só encontra limite na nossa humana forma de ser e de agir.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Sobre as coisas simples da vida

Heráclito de Éfeso, filósofo pré-socrático (cerca de 540-470 a. C.), ficou famoso pela afirmação de que tudo muda, a cada vez que alguém se banha em um rio, as águas não são mais as mesmas, a pessoa já não é mais a mesma. O elemento primordial, aquele de que tudo é feito, a causa de tudo é o movimento, tal como o do fogo, incessante. Ele era famoso como pensador, admirado pela sua sabedoria. Era até mesmo arrogante, preferindo viver isolado. Morreu com hidropisia, como os médicos não conseguiam retirar a água de seu ventre, ele mesmo se fechou em um estábulo, cobriu-se com esterco imaginado que pudesse secar a água (!), mas acabou morrendo ...
Perguntado por que muitas vezes ele se calava, respondia "Para que vocês possam tagarelar". Dizia que a felicidade não residia nos prazeres do corpo, se residisse, "diríamos felizes os bois, quando encontram ervilha para comer". O equilíbrio de todas as coisas se acha na luta dos contrários, no ser e não ser de todas as coisas.
Conta-se que certa vez foi procurado por estrangeiros, que foram visitá-lo em busca de respostas para as questões mais nobres da filosofia. Encontraram-no junto ao fogão, se aquecendo, e se espantaram por ver um sábio em uma situação comum. Ao que ele respondeu: "Junto à lareira também habitam deuses".
Nas mais simples e cotidianas tarefas, "se manifesta algo de natural e de belo", completa Heráclito.
É possível encontrar harmonia, satisfação e plenitude nos atos mais banais. Muitas vezes a filosofia serve para isso, para ver o que está diante de nossos olhos e não buscar o inalcançável quando o sentido e a completude estão à nossa mão.